sábado, 26 de fevereiro de 2011

KANT 4 - O JUÍZO ESTÉTICO


     O JUÍZO ESTÉTICO
Na reflexão sobre o juízo estético há uma tese que se tratará de demonstrar:
A experiência estética — do belo — permite estabelecer uma comunicação en­tre o mundo fenoménico ou natural (que não é um simples mecanismo mas também pode ser pensado como objecto de uma experiência estética) e o mundo numénico ou supra--sensível, que é o objecto de uma experiência moral'".
Há um plano da existência humana em que, para o homem, não se trata nem de conhe­cer cientificamente nem de querer agir moralmente mas, pura e simplesmente, de sentir. Este plano é o da experiência da beleza, o domínio da estética. O sentimento da beleza, quer de uma obra artística quer da natureza, é expresso num juízo a que Kant dá o nome de juízo estético ou juízo de gosto.
O juízo estético é a forma de comunicarmos em palavras e conceitos um sentimento: o sentimento da beleza. O juízo estético exprime o que acontece quando temos uma experiên­cia estética, i. e., traduz um sentimento que experimentamos ou vivemos ao contemplar um objecto, por exemplo, uma rosa. Dizer "Esta rosa é bela" é traduzir num juízo um senti­mento de prazer que acompanha essa contemplação.
Se a experiência da beleza é um sentimento de prazer isso significa que a beleza não é, apesar de poder parecer o contrário, uma propriedade objectiva das coisas e que o juízo es­tético é reflexionante. Será essa a primeira das suas características a ser esclarecida.
l.O juízo estético é um juízo reflexionante
Quando eu digo que algo é belo estou a transmitir uma satisfação, um sentimento de prazer que se dá na contemplação de um objecto. À primeira vista ao atribuir a esse objecto o predicado "belo" parece que estou a referir-me à beleza como propriedade que "está" nesse objecto. Contudo, segundo Kant, dizer que algo é belo é traduzir um sentimento, é expressar algo que acontece em mini. A beleza é um sentimento de prazer, algo que se dá na consciência do sujeito e não algo que seja propriedade do objecto. O sentimento da beleza começa com a experiência do objecto mas, como veremos, não deriva dela.
Assim, o juízo estético é reflexionante porque descreve aquilo que o sujeito sente. A beleza não é uma coisa nem uma propriedade das coisas. É um sentimento que é vivido no interior do sujeito e do qual este tem consciência.
Como se traduz esse sentimento? Dizendo de uma forma não muito correcta que o ob­jecto contemplado é belo.
Em suma, o juízo estético é a forma aparentemente objectiva de descrever algo que se passa em mim. Caracterizada a beleza como sentimento de prazer trataremos agora de saber que espécie de prazer se exprime no juízo estético, ou seja, quais as condições que tornam possível a experiência estética.

2. O juízo estético é a expressão de um sentimento de prazer puro e desinteressado
Quando eu julgo um objecto como belo, duas condições são necessárias:
1 — Não reduzir o objecto ao estatuto de meio que satisfaz determinado fim.
2 — Não estar condicionado por nenhum desejo de posse, não sentir nenhuma carência.
O juízo de gosto, o sentimento do belo, é exterior a toda e qualquer espécie de de­sejo, é desinteressado. Com efeito, ao julgar algo como belo eu considero determinada coisa pura e simplesmente pondo de parte toda e qualquer inclinação ou interesse. O meu juízo (por exemplo, "Este rio é belo") não pode depender de qualquer desejo nem reduz a coisa ao facto de ser desejada. Deste modo, o sentimento do belo nada tem a ver com a fa­culdade de desejar, ou vontade.
O juízo de gosto que incide no belo, exprimindo a sua experiência, comunica uma satis­fação desinteressada e pura. Para Kant dizer que algo é belo é diferente de dizer que é agra­dável.
Ao julgar um objecto como agradável está presente no sujeito um desejo de posse da coisa que preencherá um certo estado de carência. Dizer que algo é agradável não me pode, por conseguinte, tornar indiferente à existência da coisa, pois é esta que torna possível uma apropriação ou posse, fonte de prazer sensorial ou material. Como o interesse consiste "na satisfação que ligamos à representação da existência de um objecto" (C. F. J., § 2, p. 50), é evidente que o juízo do agradável só pode ser interessado. A coisa é apreciada não na sua livre manifestação mas enquanto capaz de corresponder a um desejo, a uma carência da­quele que a aprecia. Ela é considerada não pura e simplesmente, sem qualquer condiciona­mento, mas enquanto me agrada ou é meio para a realização de uma inclinação ou desejo sensível. O olhar que eu lanço sobre ela não é puro ou contemplativo; é, passe a expressão, um "olhar de caçador", dominado, condicionado pelo desejo de posse. Este impede a pureza e a simplicidade da manifestação das coisas, instrumentalizando a sua existência.
O desejo de posse do objecto tem como correlato a dependência do sujeito face às suas inclinações. Reduzindo a coisa a objecto de desejo, o sujeito veda o acesso a uma satisfação livre. Com efeito, o juízo sofre o constrangimento de um desejo sensorial, de um interesse pelo objecto. O interesse nele implícito,
«Não deixa de modo algum que o juízo sobre o objecto seja livre.»
(C. F. J., A. B., §5, p. 55)
Quando há contemplação pura, estética, o sujeito não tem nada a ligá-lo, a prendê--lo, à existência do objecto, à sua materialidade. A satisfação é unicamente determi­nada pela representação do objecto, pela sua pura forma. A concepção kantiana do sen­timento estético, como puro e desinteressado, faz deste sentimento algo de puramente formal. O limite, pode-se dizer que o sentimento estético tem de "pôr entre parênteses" o sensível naquilo que este tem de empírico ou material. Assim na pintura é a apreensão da forma dos objectos (o desenho e não a cor), aquilo que me deve satisfazer para que o sentimento seja puro ou estético; na música é a composição dos sons, e não os sons em si mesmos, que constitui o elemento propriamente estético.

O interesse está ligado àquilo que é agradável e àquilo que é bom (quer o bom relativo ou útil, que só o é a título de meio para um fim, quer o bom em si ou mais propriamente aquilo a que chamamos bem).
O agradável e o bom tem uma relação com a faculdade de desejar.
Consideremos um palácio construído unicamente com materiais preciosos e construído à custa de imenso trabalho de muitos homens. O que está em causa é saber se é belo.
Há pessoas que poderão discutir sobre a utilidade ou a inutilidade de tal obra.
Poderão uns dizer que ele é uma ostentação de luxo, que o trabalho e o dinheiro que exi­giu poderia ter sido empregue de uma forma bem mais útil na construção de estabelecimen­tos para a colectividade, tais como escolas, hospitais, laboratórios, ou habitações mais con­fortáveis e funcionais para o bem-estar dos mais desfavorecidos.
Outros poderão dizer que o palácio tem um interesse indiscutível quer pelo conforto que oferece aos seus habitantes quer pela sua boa exposição ao sol.
Segundo Kant, para nos pronunciarmos sobre a qualidade estética desse palácio, para julgarmos se é belo ou não, devemos contemplá-lo abstraindo da consideração da sua possí­vel utilidade, inutilidade e também da sua moralidade01. O juízo estético é radicalmente di­ferente de qualquer juízo ligado a um interesse.
O juízo estético implica que o objecto a que chamamos belo cause satisfação inde­pendentemente de qualquer desejo ou apetite. Um exemplo: suponhamos que olho para um quadro onde está pintado um fruto e digo que é belo. Se por isso quero dizer que gosta­ria de comer o fruto, caso ele fosse real, referindo-me assim a um apetite, a um desejo, o meu juízo não será, em termos técnicos, um juízo estético: estaria a usar indevidamente a palavra "Belo".
Apesar de ser subjectivo, i. e., de traduzir o que acontece num determinado sujeito ou indivíduo, Kant afirma que, embora não sendo objectivo ou universal de facto, o juízo esté­tico tem direito à universalidade (é subjectivamente universal).
Como é isso possível? O que torna legítima essa reivindicação?
É deste problema que trataremos a seguir.
' Há um interesse na realização do bem moral, ou seja, em agir pura e simplesmente por dever, embora a von­tade boa não encontre o seu princípio de determinação no interesse de ordem empírica. A acção que cumpre a lei moral por ela mesma é algo que estamos obrigados a querer pois só assim seremos racionais. Não há, por conseguinte, desinteresse, embora se trate de um interesse moral ou ideal.


3. O juízo estético é subjectivamente universal
O juízo científico constitui o objecto, a objectividade, como um conjunto de relações necessárias e diz-nos o que é o objecto em relação a nós.
No plano do juízo moral o objecto é aquilo que resulta das minhas decisões, ou seja, é um acção cujo princípio é o cumprimento da lei moral ou a determinação segundo princí­pios racionais.
Em ambos os planos é o sujeito que constitui o objecto. No plano do juízo estético o su­jeito não determina ou constitui o objecto mas contempla-o, ou seja, acolhe liberto de qual­quer interesse a sua manifestação.
Enquanto cientista determino o que o objecto (o fenómeno) é; enquanto ser moral determino o que o objecto deve ser, mais propriamente como devo agir; enquanto su­jeito estético acolho a livre manifestação do objecto e, apesar de parecer o contrário, digo simplesmente o que sinto, o que se passa em mim.
Não produzindo qualquer determinação objectiva, o juízo de gosto é subjectivo. Contudo, este juízo é sui generis, pretende ser universalmente comunicável. O juízo esté­tico é subjectivamente universal. Por outras palavras, quando eu digo que algo é belo eu pretendo traduzir um sentimento que se verifica em mim mas que também se deve verifi­car nos outros sujeitos. O que torna legítima esta pretensão? O que me dá direito a falar não só em nome de mim mesmo, mas em nome dos outros?
Se eu digo que um certo objecto é belo eu, implicitamente, afirmo que ele é, de direito, belo para todos. Como o meu juízo não se baseia em inclinações ou interesses (por mais elevados que sejam) que me são peculiares (unicamente meus) eu posso julgar-me no di­reito de que os outros reconheçam também a beleza do objecto, i. e., experimentem o tipo de satisfação que eu sinto. Neste sentido, o juízo estético é subjectivamente universal. Livre de qualquer interesse ou particularismo do sujeito que julga e sem se demonstrar aos outros que o objecto é belo, o juízo estético tem direito à validade universal.
Por isso eu julgo ter razão para atribuir aos outros uma satisfação semelhante àquela que eu próprio experimento. Com efeito, a satisfação estética ou pura, não se baseia na gratifi­cação, no cumprimento das minhas inclinações ou interesses. Assim eu falo do objecto como se a beleza fosse uma sua característica objectiva.

4. O juízo estético é um juízo em que se revela a harmonia original entre as faculdades de conhecimento
Kant caracteriza a experiência estética como uma livre harmonia que o sujeito sente no interior de si mesmo entre as faculdades de conhecimento: sensibilidade, imaginação e en­tendimento. Sabemos que para haver conhecimento a sensibilidade e a imaginação subme­tiam a sua "actuação" às regras, conceitos e princípios do entendimento, a "faculdade dos conhecimentos". Mediante os esquemas criados pela imaginação transcendental as catego­rias ou conceitos puros do entendimento podiam aplicar-se a algo que parecia radicalmente heterogéneo: as intuições empíricas ou sensações. Os esquemas da imaginação são sempre esquemas das categorias permitindo a submissão dos dados sensíveis ou particulares ao conceito, i. e., ao universal.
Verificámos, quando se tratava de conhecer, que os dados sensíveis captados pela sensi­bilidade eram submetidos aos conceitos do entendimento para que se pudesse constituir um conhecimento. Assim, o entendimento explicava mediante conceitos aquilo que a sensibili­dade recebia.
Na experiência estética não se verifica a submissão dos dados sensíveis a conceitos ou regras do entendimento, ou seja, não há uma submissão da sensibilidade ao entendimento. Com efeito, ao falarmos de dados sensíveis em termos estéticos estamos a falar de senti­mentos de prazer e os sentimentos não se explicam, não se demonstram.
O que acontece então? Acontece que a sensibilidade vive um sentimento de prazer na contemplação de determinado objecto e o entendimento em vez de explicar ou de demons­trar esse sentimento vai simplesmente traduzi-lo num juízo utilizando um conceito que é o conceito de belo.
Exemplo: Contemplo uma paisagem e sinto um prazer puro e desinteressado nessa con­templação. O que faz o entendimento? Traduz essa experiência formulando um juízo: "Esta paisagem é bela."
O conceito de beleza unicamente exprime um sentimento mas não o explica porque se isso acontecesse a experiência já não seria estética mas de conhecimento.
Em suma, sendo um sentimento puro a experiência da beleza não é conhecimento de qualquer objecto, e então, não o submetendo a conceitos, verifica-se que sensibilidade e en­tendimento estão em harmonia, estão de acordo, não havendo submissão de uma faculdade à outra. Isto significa que há um livre jogo entre elas, um acordo incompreensível porque indemonstrável. /
Dizer "Esta rosa é bela" é muito diferente de dizer, esta rosa é bela por isto e por aquilo. Há assim uma harmonia entre sensibilidade e entendimento, um livre jogo porque a experiência sensível não é submetida a conceitos, isto é, a demonstrações. Não há nenhuma regra preestabelecida sobre o que é a beleza, não há nenhum con­ceito sobre o que é belo que utilizemos para falar da contemplação dos objectos. Assim, não estando a sensibilidade submetida a regras fixas ou imutáveis, dá-se um li­vre jogo entre as faculdades, uma harmonia original.
Deste modo, na experiência da beleza (estética) as faculdades que contribuem para o co­nhecimento estão envolvidos mas não produzem conhecimentos,’. e., não funcionam da forma que é habitual. As faculdades de conhecimento, "alimentadas pela imaginação", rela­cionam-se livremente entre si, não visam qualquer interesse ou fim determinado. É nessa li­berdade que reside o prazer.
Não sendo um juízo de conhecimento, o juízo de gosto faz contudo apelo às faculdades do conhecimento. Mas como a sua universalidade não é conceptual, como exprime uma sa­tisfação sem conceito, não definível em termos objectivos, a faculdade de julgar estética não recebe do entendimento nenhum conceito determinado que aplicaria à diversidade in­tuitiva reunida pela imaginação. Com efeito, se assim fosse, o juízo deixaria de ser estético e tornar-se-ia cognitivo ou determinante.
Logo
«O estado de espírito nesta representação [no sentimento de prazer estético] deve ser o sentimento do livre jogo das faculdades representativas numa re­presentação geral dada em vista de um conhecimento em geral» (C. F. J., AN, § 9, p. 61).
O estado de espírito próprio do prazer estético é o livre jogo das faculdades do sujeito, i. e., a independência face a qualquer desejo, interesse ou finalidade, que transformaria as coisas em meios, impedindo uma relação original com o homem. No entanto, este livre jogo, esta harmonia do sujeito consigo mesmo, esta satisfação desinteressada (não condicio­nada pelos nossos desejos ou apetites e independente de qualquer obrigatoriedade moral), contém em si uma finalidade. Como o texto diz, ela é "em vista de um conhecimento em geral".
Se ao jogo das faculdades cognitivas no juízo estético nenhum conceito preside, se esse jogo é livre em relação a todo e qualquer conceito, temos de concluir que nenhum conheci­mento determinado, objectivo, resulta dessa conformidade espontânea, sem porquê, da imaginação e do entendimento. Portanto, a finalidade que a expressão "em vista de" indica não é uma finalidade com fim mas uma finalidade sem fim, uma simples forma de finali­dade. A liberdade lúdica, o livre jogo das faculdades, não representa em relação ao conheci­mento senão uma finalidade indeterminada. Daí ser simplesmente "em vista do conheci­mento em geral". A finalidade do sentimento de prazer estético, isto é, do livre jogo das facilidades, não é senão a conservação dessa mesma actividade livre de todo e qualquer de­sejo, interesse ou fim. O prazer estético consiste na liberdade do jogo das faculdades que visa perpetuar (daí ser finalidade sem fim) a actividade das faculdades de conhecer, não a restringindo portanto a nenhum conceito ou lei determinados.

5. O juízo estético exprime a ideia de que os objectos naturais0' cumprem uma "finalidade sem fim"
Ao dizer, por exemplo, "Esta flor é bela" eu penso esse objecto como se ele cumprisse uma finalidade, como se existisse para me dar prazer. Como o juízo estético tem de ser ex­pressão de um prazer puro ou desinteressado, que não submete o objecto a nenhum desejo, interesse ou fim, essa finalidade só pode ser uma "finalidade sem fim".
Tentemos exemplificar esta ideia de uma "finalidade sem fim" presente na expe­riência estética: Suponhamos que eu olho para uma flor, por exemplo, uma rosa. Posso ter 0         sentimento de que a sua forma realiza uma finalidade. Ao mesmo tempo não represento
ou não exprimo que finalidade definida é realizada por essa flor. Se alguém me perguntasse que tipo de finalidade a rosa cumpre eu não saberia dar uma ideia clara. Não concebemos· (não representamos segundo conceitos) nenhuma finalidade. E contudo, em certo sentido,
experimentamos ou sentimos, sem conceitos (sem a conseguir demonstrar) que a rosa,dada a harmónica organização dos seus elementos, realiza uma finalidade: causa-me prazer. Há
uma consciência (um sentimento) de finalidade do objecto mas não há nenhum conceito· (nenhuma demonstração) do fim que é realizado. Daí dizer-se que a finalidade é sem fim.
Se o nosso juízo diz que a flor é bela, não há nenhuma demonstração que diga claramente o
fim que esse objecto realiza por ser belo. Assim a sua beleza é livre e o nosso juízo é puro, ou seja, a nossa satisfação é pura, liberta de qualquer elemento conceptual ou sensorial.
O prazer estético liga-se à forma do objecto porque a manifestação deste é formalmente final. Se a finalidade do jogo das faculdades é ser actividade indefinida (daí o jogo ser fina­lidade sem fim), o dar-se, a manifestação do objecto não tem outra finalidade senão mos­trar-se livremente, sem ser meio para um fim, aparecer puro ao olhar contemplativo. A fina­lidade do jogo é ser uma abertura contemplativa e acolhedora da manifestação da coisa naquilo que ela é, na sua pureza, enquanto, correlativamente, a manifestação gratuita da coisa visa, tem como finalidade, unicamente, essa sua oferta a uma atitude que a põe ao abrigo de toda a inclinação sensível e de todo e qualquer conceito, em suma, de qualquer fim ou interesse.
01    O belo artístico que não tematizámos porque para os efeitos em vista bastava o belo natural coloca-nos perante uma relação homem-natureza análoga à verificada no juízo de gosto. Reencontramos a atitude de acolhimento, a gratuitidade e a disponibilidade, a beleza livre. No entanto, no domínio artístico, a comunhão homem-natureza é sem dúvida mais dinâmica, não há uma simples fruição do belo, mas a sua produção, a sua criação. Existe, para utilizar palavras de Heidegger, grande filósofo alemão do século xx, a construção de uma morada que a acolhe, a coisa, a natureza, no seu dar-se ao homem, permitindo a sua livre eclosão. A arte será assim a resposta criadora (e não o simples olhar contemplativo, puro e desinteressado) ao apelo de uma natureza que, passe a ex­pressão, escolhe o homem como lugar do seu desvelamento, da sua revelação livre e gratuita.
Ao falarmos de arte, de produção artística, temos de nos referir a uma regra, a um fim que determina a produção artística, para que a obra artística possa ser bela ela tem de ser livre de qualquer constrangimento conceptual. Para que a arte seja bela, a regra que a orienta não deve transparecer, ou seja, não devem aflorar indícios de que o "artista tinha a regra sob os olhos e que esta impôs cadeias às faculdades da sua alma" (C. F. J., § 46, p. 138). A arte é bela porque no talento criador do génio a regra não entrava a originalidade e a espontaneidade. A criati­vidade do génio exprime, na obra produzida, a abertura de um livre horizonte de manifestação para uma natu­reza que lhe dispensou os seus maravilhosos dons fazendo dele seu favorito. O génio corresponde a este dom ao produzir uma obra não exprimível "numa fórmula para servir de preceito", isto é, uma obra original, alheia ao espírito de imitação, em cujo acto de realização o homem age enquanto natureza (criatividade exuberante), de uma forma tão espontânea que "ele não pode descrever ou expor cientificamente como realiza o seu produto".


O BELO E O SUBLIME
O belo e o sublime têm algo em comum: ambos causam prazer e o juízo de que algo é sublime não pressupõe nenhum conceito, ou seja, tal como o juízo de que algo é belo, não é algo que se demonstre. Mas ao mesmo tempo há consideráveis di­ferenças: a experiência da beleza, como vimos, tem a ver com a pura forma do ob­jecto e a forma implica limitação. A experiência do sublime, ao contrário, está asso­ciada com a ausência de forma, no sentido de ausência de limitação, embora esta seja associada com a ideia de totalidade. Por exemplo, a esmagadora grandeza do oceano tempestuoso é sentida como ilimitada embora esta ausência de limites seja representada como uma totalidade. Kant associa a beleza com o entendimento e o sublime com a razão. A experiência da beleza, como já vimos, não depende de ne­nhuma demonstração, de nenhum conceito determinado.
Contudo, envolve um livre jogo de duas faculdades: a imaginação e o entendi­mento. O belo como algo de formalmente limitado é sentido como adequado à ima­ginação e a imaginação, a respeito de uma determinada intuição, é dita estar de acordo com o entendimento, a faculdade dos conceitos.
O sublime, contudo, "violenta" a imaginação, ultrapassa-a. E representado então, dada a sua indeterminação, como estando de acordo com a razão, a faculdade que produz as Ideias indeterminadas de totalidade. O sublime, como envolve ausência de limites e é associado com a ideia de totalidade indeterminada, pode ser encarado como "exibição" de uma ideia indefinida da razão.
Uma outra diferença é a de que, enquanto o prazer produzido pela beleza pode ser descrito como prazer positivo que se prolonga na contemplação calma, o su­blime, maravilha e causa temor mais do que prazer positivo. É a manifestação de uma poderosa força que faz estremecer quem a contempla. O sublime, de modo ainda mais nítido do que o belo, é um sentimento: a sublimidade pertence mais aos nossos sentimentos do que aos objectos. O sujeito é como que incitado a abandonar o plano sensível ocupando-se de ideias.
Adaptado de F. Coppleston, "From Wolff to Kant", in History of Philosophy.


 A experiência estética é análoga à experiência moral (o belo é o símbolo da moralidade)
Já dissemos na introdução a esta obra, Crítica da Faculdade de Julgar, que as duas obras anteriores tinham estabelecido uma espécie de fosso entre o domínio da Natureza ou realidade sensível (fenoménica) e o domínio da liberdade ou da morali­dade, ou seja, o plano da realidade supra-sensível ou numénica. Nem a Razão pura teórica nem a Razão pura prática se revelaram capazes de estabelecer uma ligação entre estas duas dimensões da realidade. Parece assim que temos a realidade (e o ho­mem) cindida, "cortada" em duas dimensões incomunicáveis. Ora, para Kant, a mo­ral deve ter alguma influência no mundo da Natureza, melhor dizendo, a moralidade deve estar de algum modo presente no mundo sensível: a Natureza não deve ser a negação absoluta da liberdade moral. Pretende-se, portanto, uma certa moralização ou espiritualização da realidade sensível ou material. De negação da liberdade mo­ral, a natureza, enquanto conjunto de objectos que podem ser belos, ;'. e., produzir prazer estético ou puro, desinteressado, transforma-se em símbolo da moralidade.
O que é que Kant entende por símbolo? Ilustremos com um exemplo do próprio Kant: um Estado democrático pode ser representado como um corpo vivo (um orga­nismo) se é governado por leis que se baseiam na vontade do povo e pode ser repre­sentado por uma máquina se é governado por uma vontade absoluta e autocrática ou ditatorial. A representação do Estado é em ambos os casos simbólica.
O Estado democrático não funciona, de facto, como um corpo vivo ou organismo nem o Estado despótico é uma máquina. Há, contudo, uma analogia entre o modo como funciona o corpo vivo e o Estado democrático e o modo como funciona a má­quina e o Estado autoritário. Assim, Kant baseia a ideia de simbolismo numa analo­gia. Surge então a questão que nos interessa: que pontos de analogia (ou seme­lhança) há entre a experiência estética e a experiência moral, entre a Beleza, o sublime e o bem moral, que justifiquem que olhemos para a experiência da be­leza e do sublime como um símbolo da experiência moral?
A experiência estética é uma experiência desinteressada (o que não quer di­zer, obviamente, aborrecida). A pureza do sentimento que incide sobre a pura forma do objecto alheando-se da sua materialidade é a característica fundamental da vivência estética. Isto tem analogias com a experiência moral. Com efeito, a acção propriamente moral consiste no puro e simples respeito pela lei moral. O senti­mento de respeito pela lei moral (pela autonomia e dignidade do homem que essa lei exige) é um sentimento puro, não patológico, i. e., não condicionado por interesses'", desejos, inclinações sensíveis, o que o torna análogo ao sentimento estético, pura contemplação que abstrai de qualquer interesse ou inclinação (sensorial) pelo ob­jecto. No plano da moralidade o que era decisivo era a forma da acção e não o seu conteúdo; no plano estético o que conta é a forma do objecto contemplado.
(l> Falámos anteriormente da atitude moral como atitude que tem um interesse elevado: a dignidade e ab­soluta autonomia do homem. Este interesse não precede contudo a acção moral mas é posto por esta.

A experiência estética do sublime (da natureza ou da arte) põe o homem em íntimo contacto com a sua dimensão supra-sensível ou moral. Mais ainda do que o belo, o sublime faz-nos reflectir sobre o nosso próprio destino convencendo-nos de que ele não se limita à experiência sensível, à dimensão fenoménica. A experiência do belo e do sublime, a experiência estética, é o símbolo da moralidade. Com efeito, "o belo prepara-nos para amar qualquer coisa, mesmo a natureza, de uma maneira desinteressada; o sublime (a experiência deste) ensina-nos a estimá-la, mesmo contra o nosso próprio interesse". A experiência estética encaminha-nos, simbolica­mente, para o bem moral. Prepara-nos para a vivência moral ao libertar-nos do interesse sensível ou empírico e ao dar-nos a noção de que a Natureza não se re­duz ao plano do mecanicismo (da causalidade física necessária) mas que nela existe uma finalidade em relação ao homem como ser moral. A experiência do belo e do sublime, fazendo-nos reflectir sobre a natureza, estabelece uma ponte, uma mediação simbólica entre a natureza e o mundo supra-sensível ou inteligível, porque nos faz ultrapassar a materialidade do mundo sensível e descobrir nele uma certa es­piritualidade, ou seja, uma adequação da natureza à nossa dimensão supra-sensível. E como se a natureza fosse a manifestação sensível de algo essencialmente espiritual ou supra-sensível. Mediante a experiência estética, os objectos naturais são intuídos na sua forma pura: são assim despojados da sua materialidade tornando-se como que espirituais dentro de nós. É isto o que acontece na contemplação da natureza. Na produção artística, por seu lado, o espiritual, o inteligível, torna-se imanente ao sen­sível. Assim, na experiência estética há uma conciliação do homem com a natureza, uma harmonia da sua dimensão espiritual com a sua dimensão sensível.






  CONCLUSÕES SOBRE A ESTÉTICA KANTIANA: A EXPERIÊNCIA DA BELEZA COMO SÍMBOLO DA MORALIDADE.

Os objectos da experiência estética.
Para Kant os objectos capazes de suscitar experiências estéticas – e que por isso recebem o nome de objectos estéticos – são de dois tipos:
a) Objectos artísticos – são criações humanas, objectos artificiais, que, produzidos pela actividade do artista, são capazes de despertar emoções e sentimentos que os avaliem como belos, horríveis ou sublimes. Exemplos: uma pintura, uma sinfonia, uma peça teatral.
b)  Objectos naturais – são produtos da natureza e não criações humanas; descobrimo-los e são capazes de despertar emoções e sentimentos que os avaliem como belos, horríveis ou sublimes.
Assim, quer a natureza quer a arte podem proporcionar prazer estético.
Na experiência estética dá-se assim a relação entre um sujeito que observa e contempla e um objecto – natural ou artístico. Ora, é precisamente na atitude do observador que reside, segundo Kant, o segredo, o carácter especial da experiência estética. Quer isto dizer que só há prazer ou satisfação estéticos se nos relacionarmos com os objectos naturais ou artísticos de uma determinada forma, se os observarmos e apreciarmos de um certo modo. Só uma determinada atitude torna possível o prazer característico da experiência estética. Essa atitude tem o nome de atitude estética e, analisando-a, iremos esclarecer quais as características próprias da experiência estética.

A atitude estética é uma atitude que não depende de interesses nem de necessidades

A experiência estética só é possível se na relação com os objectos adoptarmos uma atitude desinteressada. Em que consiste esta atitude? Consiste numa relação que não se interessa pela utilidade do objecto observado, não o transforma em meio ao serviço de um fim. Na atitude estética, apreciamos o objecto por si mesmo afastando quaisquer considerações relativas ao proveito que nós ou alguém teríamos em possuí-lo, aos valores morais que promove ou não, e pondo “fora de circuito” a vontade de ampliar conhecimentos.
Trataremos agora de aprofundar o que foi sublinhado: a atitude estética — a forma estética de relação com os objectos naturais e artísticos.

a) Não é uma atitude prática ou utilitária.

A atitude estética é alheia a qualquer consideração sobre a utilidade do objecto, não é determinada pelo desejo de posse, ou pelo eventual valor monetário ou comercial do objecto contemplado. A contemplação é, no caso da atitude estética, um fim em si mesma. A atitude utilitária impede que nos “aproximemos” de forma pura e desinteressada das produções artísticas e naturais, prende-nos aos nossos interesses e inclinações materiais ou sensíveis, isto é, não permite uma satisfação livre.

Podemos dar como exemplo o caso do agente imobiliário que, quando observa as paisagens do Gerês, não consegue evitar pensar no seu valor monetário, no excelente negócio que seria construir um aldeamento naquele local ou o caso de uma pessoa que, num museu, imagina o que seria ter um determinado quadro em sua casa, se ele combinaria com os móveis e tapeçarias da sala. Comprar uma pintura ou uma escultura considerando esse acto como um investimento com o qual se pretende obter benefício económico e social é também uma negação da atitude estética ou pelo menos um obstáculo à fruição das obras artísticas em todo o seu esplendor.

b) Não é uma atitude cognitiva (de conhecimento).

A relação com os objectos naturais e artísticos na experiência estética não é motivada primordialmente pela vontade de adquirir e de ampliar conhecimentos.
Imaginemos que estudantes de História de Arte visitam vários monumentos e se revelam capazes de identificar os vários estilos arquitectónicos, as características de cada um e as diferentes épocas a que pertencem. Nada há de negativo neste comportamento porque o conhecimento permite desfrutar com mais prazer a contemplação das obras artísticas (é importante educar o gosto e neste sentido o conhecimento artístico é um auxiliar muito valioso de uma atitude — a estética — que não é em si mesma cognitiva). Contudo, se contemplam esses monumentos para consolidar conhecimentos adquiridos ou para os pôr à prova, não podemos dizer que a sua atitude seja estética. Se gostamos de arte mas predominam objectivos profissionais e sociais na nossa relação com as obras de arte corremos o risco de nos afastarmos da forma de contemplação pura e desinteressada que caracteriza a atitude estética.
Pode-se também dizer que o biólogo que estuda um bosque de árvores milenares para verificar o estado da sua flora manifesta uma atitude cognitiva e não estética, tal como o antropólogo que estuda a arquitectura e a cerâmica de uma comunidade para conhecer os seus costumes.

c) Não é uma atitude subordinada a princípios e objectivos morais.

Se uma pessoa sente prazer na contemplação de um dado objecto estético (filme, poema, romance, conto…) somente por lhe reconhecer valor moral, a sua atitude não é estética. A nossa atitude só terá forma estética se dermos atenção ao objecto contemplado por si mesmo e não à relação do objecto com os nossos conceitos e princípios morais.

Em suma, a experiência estética é desinteressada, não porque seja indiferente ou passiva, mas porque na contemplação do objecto o sujeito se comporta como se ele não tivesse qualquer utilidade. A contemplação do objecto não tem qualquer finalidade situada fora de si própria. Por isso, a experiência estética é, segundo Kant, puramente contemplativa, isto é, livre de qualquer forma interessada de relação com objectos naturais ou artísticos. Manifestar desinteresse em termos estéticos não significa dizer que o objecto contemplado não tem qualquer importância ou que, como vulgarmente se diz, é desinteressante. Quando a respeito da experiência estética se fala em satisfação pura e desinteressada, estamos a dizer que não está presente aquele tipo de interesse que tem a ver com as nossas vantagens ou desvantagens. Consideramos algo simplesmente por si mesmo e não por referência à sua utilidade para nós ou para todo o social. Não subordinamos a obra de arte a desejos sensoriais ou a qualquer conceito moral, político ou religioso.

d) O belo é o símbolo da moralidade.
analogias entre as experiências estética e moral. A moralidade consiste no sentimento de puro e simples respeito pela lei racional (a lei moral), ou seja, em agir de forma pura e desinteres­sada; a experiência da beleza é um sentimento puro e desinteressado de prazer. O bem moral e o belo valem pela sua forma, ou seja, pela rejeição de qualquer condi­cionamento empírico, centrando-se no interior do sujeito. Assim, Kant, embora sali­ente as diferenças, considera que, pela sua pureza e desinteresse, a vivência da be­leza é uma propedêutica, uma preparação para o desenvolvimento da atitude moral, uma mediação que permite pensar a harmonia entre o homem como ser moral ou in­teligível e o homem como ser fenoménico ou sensível, natural.»
Adaptado de Frederíck Coppleston, History of Philosophy, vol. 7

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