sábado, 26 de fevereiro de 2011

KANT 6 - AS REVOLUÇÕES COPERNICANAS DE kANT


As revoluções copernicanas de Kant
O tema da "revolução copernicana" não diz simplesmente respeito ao plano do conheci­mento, embora os textos de Kant referentes a essa sua revolução incidam no problema da ciência e da sua fundamentação metodológica. Ora, na verdade, que "o objecto gire em torno do sujeito" (entenda-se do sujeito humano) é algo que se pode verificar em planos não científicos como a moral, a religião e a estética.
1. A "REVOLUÇÃO COPERNICANA" DE KANT NO PLANO DO CONHECIMENTO
A "revolução copernicana" de Kant traduz o primado da actividade do sujeito no plano do conhecimento, uma vez que embora comece com a experiência, ele procede ou deriva das formas a priori do sujeito. O conhecimento só é possível se o objecto for adequado à nossa capacidade de conhecer. Assim, o nosso conhecimento define-se pelo seu carácter transcendental porque, propriamente falando, nós não conhecemos os objectos em si mes­mos, mas a forma de os conhecer. Por isso diz Kant "que só conhecemos a priori nas coisas o que lá pomos". A universalidade e a necessidade que caracterizam os juízos sintéticos a priori ou científicos são obra do sujeito e dizer que conhecemos os objectos cientificamente é dizer que conhecemos a relação necessária que entre eles estabelecemos.
Assim, o objecto da actividade cognitiva gira em torno do sujeito e por ele devemos en­tender a objectividade que o sujeito constitui. Por objectividade entendemos o conhecimento científico. Conhecer cientificamente é estabelecer relações necessárias entre os objectos, ou seja, é objectivar. A objectividade é um acto ou uma construção do sujeito: é o conjunto de relações necessárias que certas formas a priori (não derivadas da experiência) do sujeito es­tabelecem entre os dados empíricos. O conhecimento objectivo depende (gira em torno) de condições a priori que só podem estar no sujeito que conhece.
Tal como Copérnico substituiu o geocentrismo pela ideia de que a Terra girava em torno do Sol, Kant substituiu uma concepção passiva do conhecimento, que fez deste um registo da realidade, pela ideia de que a nossa faculdade de conhecimento impõe as suas formas e as suas leis à realidade, não sendo determinada pelos objectos. Só esta revolução metodológica permite fundamentar o conhecimento científico.
l. l. A superação do racionalismo dogmático e do empirismo britânico0'
Em Kant, o entendimento humano é o criador da estrutura inteligível da realidade ou do conjunto de coisas que com o sujeito se relacionam: os fenómenos. Qualquer acesso cogni­tivo à realidade em si mesma, i. e., transcendendo o espaço e o tempo, está vedado. O su­jeito é criador do objecto simplesmente se por este entendermos a objectividade, ou seja, as relações necessárias, causais, que as suas formas a priori estabelecem entre os dados sensíveis. Pelas considerações já apresentadas, devemos concluir que a "revolução copernicana", a atribuição de um papel verdadeiramente activo ao sujeito, implica a limitação desta actividade ao domínio da experiência possível.
O racionalismo dogmático acreditava cegamente nas capacidades da razão pura. Julgava que esta podia conhecer as realidades metafísicas. Mas julgava que tal era possível porque não efectuara uma análise crítica das suas capacidades (era dogmático). Efectuada essa aná­lise chega-se à conclusão de que a razão pura (a razão independentemente da ligação a qualquer outra faculdade e aos objectos empíricos) nada pode conhecer. A "revolução copernicana" ao afirmar o papel central do sujeito no conhecimento objectivo estabelece li­mites à sua actividade: só estabelece relações necessárias ou causais entre os dados que consigo se relacionam, ou seja, entre os fenómenos. As realidades metafísicas são inacessí­veis em termos cognitivos. O conhecimento não deriva da experiência mas começa com ela e, portanto, embora dependente das formas a priori do sujeito, só pode ser conhecimento de realidades sensíveis.
Se a superação do racionalismo está implícita na "revolução copernicana", a ultrapas­sagem do empirismo igualmente o está. Afirmar que todo o conhecimento começa com a experiência e dela deriva é um exagero. Desconhece-se a existência no sujeito de estruturas a priori, independentes da experiência, que dela não derivam e que aplicadas aos dados em­píricos, melhor dizendo, às coisas, as transformam em objectos a conhecer (coisas em rela­ção espácio-temporal com o sujeito) e em objectos de conhecimento (dados objectivados pe­las categorias do entendimento). Não podemos explicar a possibilidade do conhecimento científico se assumirmos que o sujeito é fundamentalmente passivo: temos de afirmar, contra o empirismo, a construção do objecto de conhecimento por parte do sujeito. Se o conheci­mento é acerca dos objectos empíricos, então começa com a experiência, mas não deriva todo dela, porque o fundamento da validade da ciência como conhecimento a priori está nas estruturas não empíricas do sujeito, não depende da constante referência à experiência.
A filosofia de Kant não é aproveitamento puro e simples do que há de positivo quer no racionalismo quer no empirismo. Não é o resultado de uma selecção. É o produto de um es­forço crítico que, ao analisar, ao detectar as insuficiências dessas duas correntes, conclui que nenhuma delas tem validade, devendo, portanto, ser superadas. A afirmação das insufi­ciências do empirismo está intimamente ligada à afirmação da possibilidade do conheci­mento a priori. A superação do racionalismo tradicional;’. e., a negação da possibilidade da metafísica enquanto ciência, está intimamente ligada ao estabelecimento dos limites do conhecimento a priori. As grandes verdades da metafísica são assim colocadas fora do al­cance das extravagâncias racionalistas e perdem o estatuto de argumentos pretensamente ci­entíficos ao serem referidas à consciência moral.
Sintetizando:
A crítica das possibilidades da razão pura em termos cognitivos consiste nisto: o conhe­cimento começa com a experiência e só pode ser acerca dos objectos desta, porque sem isso nenhum juízo sintético ou cognitivo é possível. Se as extravagâncias da razão pura devem ser rejeitadas para que se constitua um conhecimento científico devidamente fundamentado e credível, as limitações do empirismo impedem também uma fundamentação válida dos conhecimentos científicos ou a priori, porque desconhece a função de estruturas transcen­dentais do sujeito sem as quais não há organização da experiência. O conhecimento científico é um facto que para ser devidamente fundamentado implica a superação do racionalismo dogmático e do empirismo0'.
Assim, Kant supera duas correntes que reduziam, respectivamente, o conhecimento a uma análise conceptual (o racionalismo tradicional) e a juízos sintéticos a posteriori (o em­pirismo) revelando-se ambas impróprias para legitimar — mostrar como é possível — aquilo que era um facto: a existência indubitável de conhecimentos universais e necessá­rios, /'. e., de juízos sintéticos a priori.
1.2. Consequência fundamental da revolução metodológica kantiana: a metafísica não pode ser a ciência primeira da qual todas as outras dependeriam (a emancipação da ciência face à metafísica)
"Com Kant a metafísica deixa de ser um momento na constituição da ciência (física, matemática)." (Alexis Philonenko)
Contrariamente a Descartes, que se apoia numa nova metafísica, em novos princípios ou alicerces para construir o edifício científico, Kant verifica e justifica que não é possível fun­dar a ciência, conhecimento que progride, sobre a metafísica, disciplina onde reina a luta in­terminável entre teses opostas e, portanto, saber confuso, que não progride. Como fundar a ciência sobre a metafísica se sabemos, através da análise transcendental das fontes, valor e limites do conhecimento humano, que a metafísica não tem valor científico? Não faria sen­tido construir sobre algo inexistente uma física e uma matemática que são ciências existen­tes de facto (2).
Se a propósito de Kant e Descartes se fala de fundamentação da ciência, temos de dis­tinguir o tipo de fundamentação:
(1)                      O racionalismo tradicional — inspirado sobretudo em Descartes
1 — Em Descartes temos uma fundamentação metafísica da ciência, isto é, uma fundação baseada em realidades metafísicas tais como Deus e alma (mas sobretudo Deus, que é o verdadeiro pilar do sistema científico que Descartes se propôs construir)"';
2     — Em Kant temos uma fundamentação transcendental e não transcendente do conhecimento científico, isto é, uma análise das condições a priori de possibilidade do conhecimento científico que não remete para lá das faculdades humanas inter­venientes na constituição da ciência (entendimento e sensibilidade e de algum modo a razão). A fundamentação da ciência esgota-se na análise das funções das faculdades que constituem o nosso poder de conhecer. Não há necessidade de refe­rência a uma garantia metafísica, no sentido tradicional do termo.
2. A "REVOLUÇÃO COPERNICANA" DE KANT NO PLANO DA MORAL
2. l. Um novo conceito de bem moral
No plano moral, também o objecto gira em torno do sujeito. O bem moral é definido pela vontade do sujeito na sua relação com a lei moral. O bem moral não é algo que a von­tade procure atingir mediante as suas acções, mas sim uma acção boa em si mesma, isto é, o respeito puro e simples pela lei moral: o bem moral consiste em agir por dever, é um senti­mento de respeito absoluto pela lei moral e por isso é imanente à vontade racional do su­jeito. O objecto moral é, assim, constituído pelo sujeito, que pela sua pureza e racionalidade dá às suas máximas o valor de princípios objectivos. O bem moral deixa de ser um fim para o qual o cumprimento de determinados deveres era um meio, tornando-se um qualificativo da vontade que age por dever, de uma forma absolutamente desinteressada. O bem não está naquilo que se faz, mas na forma como agimos, isto é, na intenção que anima a vontade quando decide agir.
Não há objecto (bem) antes da lei moral, pois é o cumprimento da lei que constitui o bem. Diremos então que "boa" é um qualificativo que a vontade, agindo intrinsecamente em conformidade com a lei da sua liberdade, dá a si própria. O bem é, em última análise, uma vontade boa. O homem é criador dos seus próprios fins. A sua acção não se exerce face a uma realidade (o bem moral) que lhe seja dada para cumprir. Quer isto dizer que a lei moral é absolutamente primeira, não se deduz de nada.
(" O fundamento e o valor da ciência encontram-se para Descartes fora do espírito humano (Deus), ao passo que em Kant se dá o contrário. Na questão "Que posso saber?", Deus não desempenha papel algum. A ciência hu­mana não necessita de garantia divina. O problema da inteligibilidade do mundo não é colocado para lá das for­ças do homem. O homem pode fazer ciência mesmo que seja ateu. Quer Deus exista ou não, a ciência em nada é afectada. Ela só depende do homem.

Podemos dizer que a moral anterior a Kant é caracterizada pela ausência do imperativo categórico. Toda a acção é um meio para a realização de uma finalidade, e é com base nessa finalidade preestabelecida que a moralidade da acção é avaliada.
Para Kant o próprio fim da acção boa é ela mesma e não se estabelece o que é o bem para depois se exigir à vontade que estabeleça os meios que o permitem alcançar.
Em suma, também aqui se evidencia o carácter activo do sujeito: o objecto moral (o bem) não é dado ao sujeito nem pode derivar da experiência mas é definido pelo sujeito: o bem é agir por dever puro e simples.
«Todas as éticas pré-kantianas partiam da determinação daquilo que é 'bem moral' e 'mal moral', daí deduzindo a lei moral, prescrevendo então o visar o bem e evitar o mal.
Em consequência do seu formalismo, Kant subverte precisamente os termos da questão: 'O conceito de bom e mau não deve ser determinado antes da lei mo­ral, mas somente depois dela'. O que significa que 'não é o conceito de bem como objecto que torna possível e determina a lei moral, mas, ao contrário, a lei moral que, antes, determina o conceito de bem, no sentido que este mereça ser chamado assim tão absolutamente'.
Em suma, é a lei moral que determina o bem moral e não o contrário. É a in­tenção pura ou a vontade pura que faz ser bom aquilo que quer e não o con­trário (não há coisa alguma ou qualquer conteúdo dos quais poderiam derivar a intenção e a vontade pura).»
J. Reale e D. Antiseri, História da Filosofia, vol. n, p. 98
2.2. Consequência fundamental desta revolução: a emancipação da moral em relação à ciência e à metafísica
Kant fala de uma primazia da moral (da razão no seu uso prático). Toda a Crítica da Razão Pura se destina a legitimá-la de um ponto de vista teórico, isto é, a mostrar a sua possibilidade lógica. O interesse supremo da razão é prático (moral). A moral, diz Kant, é a fonte da filosofia crítica. A filosofia crítica é dinamizada, animada pela necessidade de mostrar que o homem não é unicamente ciência, sujeito epistémico. É também e sobretudo sujeito moral. Por esse motivo, a razão sente-se mais atraída para o mundo moral (supra--sensível, da liberdade, numénico) do que para o mundo da ciência, confinado aos limites fenoménicos, espácio-temporais. Por esse motivo a razão tenta, face ao dogmatismo metafí­sico, salvaguardar um uso supra-sensível legítimo (o uso prático, a moral), tenta impedir que tudo seja reduzido a fenómeno, ao império da necessidade mecânica, negador da liberdade, e igualmente que a razão permaneça no impasse das antinomias.
Para Kant, a moral é independente da metafísica. Isto não quer dizer que nada tenham a ver uma com a outra. Bem pelo contrário. A moral é para Kant o fundamento de uma nova metafísica, legítima, porque é no uso prático da razão que temos uma via de acesso aos ob­jectos da metafísica: liberdade, imortalidade e Deus.

Em Kant, a moral é autónoma face à metafísica dogmática, pseudo ciência, que por Descartes era considerada a ciência dos fundamentos ou das verdades primeiras. Esta auto­nomia significa que as regras fundamentais da conduta humana não são deduzidas de pro­posições metafísicas pretensamente científicas nem de proposições legitimamente cientí­fica. É a distinção fenómeno-númeno que impede a dedução das regras da conduta a partir da metafísica, ao mostrar que esta não pode ser ciência, anulando assim o estatuto cartesia­no de ciência primeira.
Ao dogmatismo racionalista que pretende demonstrar a existência de Deus, a imortali­dade da alma, etc., para daí deduzir os deveres essenciais (seria deduzir a moral da metafí­sica, o dever da existência de Deus — heteronomia), Kant opõe a autonomia da moral face a qualquer ciência e, sobretudo, à dita "rainha das ciências", esse pseudoconhecimento teórico que era a metafísica dogmática.
Afirmar que Deus cria a lei moral é arruinar a autonomia da razão prática. Se Deus é condição para o horizonte de síntese que o Soberano Bem institui, o seu postulado é facul­tativo no sentido em que para responder à pergunta prática "Que devo fazer?" não é preciso recorrer à realidade de um legislador transcendente (negação da autonomia da razão hu­mana). A lei moral que a mini mesmo imponho basta para me dizer que devo agir de modo a que me torne digno de ser feliz. Do ponto de vista ético, aquilo que fundamental­mente é obrigatório é o dever da minha autonomia. Sou um ser moral (sentido estrito) mesmo que não acredite em Deus. Deus é a realidade exigida simplesmente para respon­der à questão: "Que posso esperar?" Aquele que se conduz moralmente só pode esperar a sua total perfeição e felicidade (o Soberano Bem) se admitir a existência de Deus.
3. A "REVOLUÇÃO COPERNICANA" NO  PLANO RELIGIOSO: A RELIGIÃO NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO
Kant separa ciência e fé (religião), e, condenando a metafísica dogmática, assegurará ao lado da Física um lugar à Moral, ela mesma o princípio da Fé. Ao contrário de Descartes, mas na mesma linha de preocupações, não funda a religião na Metafísica (no sentido tradi­cional) mas na Moral, na razão pura prática e não na razão especulativa.
Exemplo:
A admissão da existência de Deus é feita pela razão. Mas esta admissão é um acto de fé. Podemos falar dele como fé prática pois relaciona-se com a moral, com a acção virtuosa, com o dever. A lei moral diz que é nosso dever promover o Soberano Bem. Ora não pode­mos conceber a realização do Soberano Bem a não ser que afirmemos que existe Deus. Assim, embora a lei moral não esteja directamente em relação com a fé em Deus, está na base de tal fé. Se a moral não pressupõe a religião (seria heteronomia) a religião pressupõe necessariamente a moral, a moralidade.
O objecto religioso gira em torno do sujeito humano: Deus é algo cuja existência é to­mada por verdadeira em nome de uma exigência moral do homem. O sentido da existência de Deus está na sua relação com a vida moral do homem: fora do horizonte da moral não há razão de ser para a existência de Deus.
Deus é um ente cuja existência postulamos para que seja possível a esperança no cum­primento integral do homem como ser moral. O homem, dada a consciência da sua finitude não toma o lugar de Deus (não se deve falar em Kant de uma "morte de Deus") mas com Kant, o homem é o centro por referência ao qual tudo ganha sentido.
4. A "REVOLUÇÃO COPERNICANA" NO PLANO ESTÉTICO
«Kant quis realizar no plano estético, assim como no domínio do conheci­mento e no da moral, uma revolução copernicana. Sabemos que a hipótese de Copérnico substituía o geocentrismo pelo heliocentrismo, i. e., fazia do Sol e não da Terra o centro do nosso sistema planetário. Kant, na ordem do conhe­cimento, dizia que não era nas coisas (nos objectos) mas sim no espírito (no sujeito) que se encontrava o centro, o fundamento do conhecimento cientí­fico.» [Louis-Marie Morfaux]
No plano estético verificamos que a validade do juízo estético se encontra no sujeito e não nos objectos. A beleza não é uma propriedade objectiva das coisas mas sim um senti­mento. O sentimento de prazer tem um valor estético se o sujeito ao contemplar o objecto estiver liberto de qualquer desejo ou interesse.
Assim, as condições que nos permitem falar de um objecto como belo encontram-se do lado do sujeito. A beleza é uma característica do nosso sentimento de prazer desinteressado e não uma qualidade que está nos objectos. A beleza não é uma coisa mas algo que eu sinto na relação pura e livre com as coisas.


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