sábado, 26 de fevereiro de 2011

NIETZSCHE 9 - O ETERNO RETORNO


O ETERNO RETORNO
Desprezados os «valores superiores» que funcionavam como desvalorização da vida ter­restre, corremos o risco de não encontrar valor para esta vida. A doutrina do eterno retorno surge como resposta às questões «Que valor dar à Terra?», «Como dar ao tão longamente desprezado mundo do devir a consistência e o sentido pleno até agora reservado ao mundo supra-sensível?»
O sim à Terra é a adesão ao tempo, ao devir, «eternização» do tempo. Esta eternidade não é concebida como negação do finito. A metafísica racionalista, dualista porque essenci­almente niilista, baseava-se na transcendência de Deus, o Ser supremo, para elevar o eterno acima do tempo terrestre, considerado demasiado inconsistente. Ao carácter transitório e desgastante do tempo terrestre, o metafísico dualista opunha a permanência, melhor di­zendo, a imutabilidade do Eterno. A desaparição de Deus, a morte do Eterno transcendente implica que poderá acender-se no mundo do devir, na Terra, a chama da eternidade. Devolver à terra todo o seu valor, um valor absoluto, eis a função desta inversão. Afirmação total da vida e do devir, o pensamento do eterno retorno é a forma de ul­trapassar o niilismo, o desencanto perante a ausência do Sentido a que a morte de Deus parecia condenar o homem. É o pensamento que deve suceder à «hora do grande desprezo», e imprimir na vida humana a imagem da eternidade impedindo a elevação do olhar para uma incerta outra vida.
Vejamos, em termos gerais, em que consiste a doutrina do eterno retorno da vida.
Este mundo é todo o ser e tem em si o selo da eternidade. O sentido da Terra não é transcendente. Esta dupla ideia resume no essencial a doutrina do eterno retorno. Nietzsche recusa procurar o sentido do mundo num Ser supremo transcendente porque tal sentido se revelou um contra-senso. Com efeito, ele retirava à Terra o seu valor, denegria-a. Descoberta a fraude do Ideal, a imoralidade do «mundo superior», aquele que não se deixa iludir por esperanças supraterrestres coloca o sentido da terra na terra. Ora, não há maior afirmação possível da vida e do mundo do que a concepção do mundo como algo em que tudo o que acontece infinitamente volta a acontecer. A metafísica dualista considerava este mundo como incompleto, imperfeito e insatisfatório, indigno de ser vivido por si mesmo. Para tal metafísica, e isso é o que a análise genealógica descobre, o tempo que tudo des­gasta e corrompe, retirando a cada coisa a possibilidade de completar-se, é a causa da im­perfeição deste mundo. Este é assim diminuído perante o carácter completo e perfeito do mundo do Ser, de Deus, Reino da eternidade.
Afirmar que uma infinidade de vezes tudo retorna é colocar o mundo do devir à mar­gem do desgaste e da imperfeição provocados pela temporalidade evanescente. Com efeito, se cada momento que constitui o devir se repete uma infinidade de vezes, podemos di­zer que ele dura uma eternidade. A eternidade de que fala a «revelação» do Eterno Retorno não é a temporalidade do Deus imutável mas sim o carácter infinito do próprio tempo. Não é uma eternidade que transcende o tempo; designa, pelo contrário, o próprio ser do tempo. Nietzsche considera a «revelação» do Eterno Retorno (tudo volta e retorna eterna­mente) como o ponto supremo da contemplação, porque ela anula a cisão (o dualismo) entre o Ser e o devir, entre o permanente e o efémero, implantando no devir o carácter do ser.
A doutrina do Eterno Retorno concebe o Ser como devir, no seu eterno retornar. Ela é superação da metafísica dualista ou, por outras palavras, a «inversão do platonismo».
Segundo Nietzsche, a crença fundamental da metafísica platónica é a crença na antinomia, na cisão radical, dos valores.
O pensamento do Eterno Retorno rejeita o dualismo Ser-Devir (permanente-efémero) ao anular a cisão tempo-eternidade, fazendo do tempo uma duração infinita; a distinção «mundo aparente-mundo verdadeiro» é rejeitada porque aquele que afirma o eterno retorno do que existe e está em devir diz corajosamente «sim» a um mundo em que não existem verdades «em si», absolutas, isentas de perspectivismo, a um mundo em que o bem e o mal estão unidos.
Esta concepção do tempo como duração infinita dá ao mundo sensível, ao mundo do de­vir, a realidade plena, a densidade ontológica que o pensamento dualista atribuía ao «mundo inteligível». Em suma, dá ao devir, a «esta vida», a forma da eternidade. Deste modo, a plena realização da vida sensível e terrestre não é adiada para uma outra vida. A vida eterna já está em nós, aqui e não no «além», num paraíso imaginário. Não faz assim sentido a ideia de «imortalidade da alma».
1.1. O «eterno retorno» enquanto tema essencialmente moral
«Mesmo admitindo que a repetição cíclica não é senão algo de verosímil ou uma possibilidade, o seu simples pensamento, o pensamento da sua possibili­dade pode comover-nos e transformar-nos, tanto quanto certos sentimentos ou esperanças.»
[Nietzsche, A Vontade de Poder, vol. IV, p. 241.]
O pensamento do eterno retorno é, para Nietzsche, o mais formidável teste e desafio à força e à capacidade de afirmar a vida tal como ela é, ou seja, trágica, sem consolações transcendentes, dura.
Quer na obra Assim Falava Zaratustra, quer na Gaia Ciência, salvaguardadas certas di­ferenças, este «supremo ensinamento», este «pensamento abissal» é um desafio à capaci­dade de encarar alegre e corajosamente que o mundo e a vida não possuem um carácter di­ferente daquele que apresentam. Não importa que a «revelação» da repetição cíclica seja uma simples hipótese não provada.
A verdade da ideia do eterno retorno é bem menos importante do que o seu efeito sobre o homem que a ela adere. E não se trata simplesmente de encontrar homens capazes de suportar tão desconcertante revelação. Exige-se principalmente o aparecimento de ho­mens capazes de abraçar essa mensagem suprema, louvando a visão do eterno retorno com um fervor inédito e insuperável.
Em que consiste a transfiguração do homem que faz dessa «visão» o guia da sua acção?
Quem afirma o eterno retorno de todas as coisas quer esta vida (a única) na sua totalidade, quer a divinização de toda a existência, mesmo nos seus aspectos mais dolorosos. Afirmar o mundo sensível, o seu eterno retornar, ou seja, querer tudo o que constitui a existência, e eternamente, para sempre, é a maior prova de fidelidade à terra. O ho­mem que assim dá a esta vida o peso da eternidade é o homem liberto do ressentimento e do desencanto perante o desvanecimento dos valores ditos superiores. Não há razão para o ressentimento porque há a aceitação corajosa do real, mesmo nos seus piores aspectos. Este mundo não é melhor nem pior do que outro porque é único. Para aquele que tem a coragem de o enfrentar, ele vale por si, para além do bem e do mal. Não há razão para o desencanto porque a via que, entre a teologia moralista e a abdicação niilista, coloca o sentido da terra na terra é aquela que afirma com exuberância que nada se perde e tudo regressa ou retorna necessariamente. Aquele que afirma a vida eternamente, atribuindo à existência humana e ao mundo a plenitude que outrora imoralmente se concentrava no Deus dos fracos e dos in­vejosos, liberta-se da vontade de vingança, justificando e aprovando, para além do bem e do mal, todo o ser.
O «ensinamento» do eterno retorno é essencialmente moral porque é um pensa­mento cuja função é transformar a atitude do homem a respeito da vida e de si mesmo: ter a coragem de dizer sim à vida e ter a coragem de ser o que se é, eis o impe­rativo que a afirmação do eterno retornar da existência cumpre. Morto o Deus inimigo da vida, dar a esta a forma da eternidade, dizer que a eternidade não está para além desta vida é a manifestação suprema de veneração. A filosofia do eterno retorno é a doutrina da adoração incondicional da vida através de todos os seus enigmas e sofrimentos e «eleva o homem à sua mais alta responsabilidade trágica». A aprovação da alegria é também a apro­vação da dor. A efémera vida humana adquire uma terrível gravidade. O homem que incorpora o pen­samento dos pensamentos em qualquer dos seus actos deve perguntar a si mesmo. «Quero--o de tal modo que quererei realizá-lo um infinito número de vezes?». Dizer sim é assumir um pesado fardo, é manifestar a vitalidade de um Super-Homem.

Na resposta que cada homem dá à mais pesada das questões revela-se a distância entre a vontade de poder forte e a vontade de poder fraca.
Antes de prosseguir a exposição do pensamento de Nietzsche, um texto de Milan Kundera evidenciará o carácter original e perturbante de uma moral guiada pela ideia de eterno retorno. Esta daria a cada acto um peso que o tornaria irremissível, uma pesada res­ponsabilidade. O «sim» à vida, à terra, encontra na ideia de eterno retorno o seu suporte.
«O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conse­guiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato? O mito do eterno retorno diz-nos, pela negativa, que esta vida, que há-de desaparecer de uma vez por todas para nunca mais vol­tar, é semelhante a uma sombra, é desprovida de peso, que, de hoje em diante e para todo o sempre, se encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não têm qualquer sentido. Não vale mais do que uma guerra qualquer do sé­culo xix entre dois reinos africanos, embora nela tenham perecido trezentos mil negros entre suplícios indescritíveis.
Mas algo se alterará nessa guerra do século xiv entre dois reinos africanos se, no eterno retorno, se vier a repetir um número incalculável de vezes? Sem dúvida que sim: passará a erguer-se como um bloco perdurável cuja estupi­dez não terá remissão.
Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, a historiografia francesa or­gulhar-se-ia com certeza menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a algo que nunca mais voltará, esses anos sangrentos reduzem-se hoje apenas a pala­vras, teorias, discussões, mais leves do que penas, algo que já não aterroriza ninguém. Há uma enorme diferença entre um Robespierre que apareceu uma única vez na História e um Robespierre que eternamente voltasse para cortar a cabeça aos Franceses.
Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as coisas não nos aparecem como é costume, porque nos aparecem sem a circunstância atenuante da sua fugacidade. Essa circunstância atenuante im­pede-nos, com efeito, de pronunciar um veredicto. Poderá condenar-se o que é efémero? As nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da nostalgia; mesmo a guilhotina.
Não há muito, eu próprio me defrontei com o facto: parece incrível, mas, ao fo­lhear um livro sobre Hitler, comovi-me com algumas das suas fotografias; fa­ziam-me lembrar a minha infância passada durante a guerra; diversas pessoas da minha família morreram nos campos de concentração dos nazis; mas o que eram essas mortes comparadas com uma fotografia de Hitler que me fazia lem­brar um tempo perdido da minha vida, um tempo que nunca mais há-de voltar? Esta minha «reconciliação» com Hitler deixa entrever a profunda perversão inerente a um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência de retorno, porque nesse mundo tudo se encontra previamente perdoado e tudo é, por­tanto, cinicamente permitido. Se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um número infinito de vezes, ficamos pregados à eternidade, como Jesus Cristo à cruz. Que ideia atroz! No mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade. Era o que fazia Nietzsche dizer que a ideia do eterno retorno é o fardo mais pesado (das schwerste Gewicht). Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza. Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?
O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é.
Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes. Que escolher, então? O peso ou a leveza?»
[Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, trad. Joana Varela, Lisboa, Publicações Dom Quixote, pp. 5 e 6.]

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