terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O PROBLEMA DA MORALIDADE DO ABORTO 3 - DONALD MARQUIS



DONALD MARQUIS
O argumento do valor da vida consciente futura: é errado matar o que tem um futuro com valor.
Este argumento foi apresentado por Donald Marquis (n. 1935). Para mostrar por que razão é errado matar fetos humanos, Marquis começa por fazer duas perguntas: 1- «Quando é errado matar?»; 2 – «Por que razão é errado matar pessoas como nós?».
Segundo Marquis, é errado matar quando matamos seres humanos conscientes de si e dotados de racionalidade.
E por que é errado matar seres humanos, pessoas como nós? Porque vamos privá-las de um futuro com valor, da possibilidade de terem aqueles bens que dão valor à vida: prazer físico, amizades, conhecimentos, experiências e outros bens. A morte prematura é um infortúnio. É errado matarem-nos porque perdemos esses bens que dão valor ao nosso futuro.
Mas até agora não falamos dos fetos humanos. Porque será errado matá-los se não são indivíduos conscientes de si e dotados de racionalidade? A resposta de Marquis é a de que os fetos têm algo que os torna semelhantes a nós. O quê? Um futuro com valor (que, conforme os indivíduos e as suas condições de vida, será mais ou menos valioso) Mas será que um feto tem a capacidade de valorizar seja o que for? Não, porque não tem consciência de si. Contudo, segundo Marquis, apesar de o feto não ser uma pessoa, isso não significa que não seja um indivíduo que irá valorizar o que há de bom numa vida consciente futura. Tal como um jovem de 15 anos, o feto tem uma vida consciente à sua frente, bens e coisas valiosas para desfrutar. Matá-lo é, em certa medida, semelhante a matar uma pessoa de 15, 20 ou 65 anos. Impedimo-la de gozar os bens de uma vida consciente futura. Será privada da possibilidade de ter um futuro significativamente valioso. Perderá todos os bens futuros de uma vida consciente, será privada de um «futuro como o nosso». O aborto, tal como o homicídio, é o infortúnio de uma morte prematura.
Mas é sempre errado abortar? Não. Se o feto tiver deficiências muito graves que o iriam condenar a uma vida futura sem a mínima qualidade, não terá um futuro com valor e nesse caso abortar é admissível.
Podemos resumir o argumento de Marquis:

1 – Se um indivíduo tem um futuro com valor, então é errado matá-lo.
2 – Os fetos humanos, em geral, têm um futuro com valor.
3 – Logo, em geral, é errado matar fetos humanos (o aborto, em geral, não é moralmente admissível)
Actividade
Após a leitura do texto seguinte responda às questões
O aborto é profundamente errado.
«Aquilo que fundamentalmente torna errado o acto de matar não é o efeito des­se acto no assassino ou nos amigos e familiares da vítima, mas o seu efeito na própria vítima. A perda da própria vida é uma das maiores perdas que podemos sofrer. A perda da vida priva-nos de todas as experiências, actividades, projectos e prazeres que teriam constituído o nosso futuro. Logo, matar alguém é errado fundamentalmente porque o acto de matar inflige uma das maiores perdas possíveis à vítima. Porém, pode ser enganador descrever esta perda como a perda da vida. A mudança no meu estado biológico não faz, por si mesma, que seja errado matarem-me. O efeito da perda da minha vida biológica é a perda de todas as actividades, projectos, experiências e prazeres que teriam constituído a minha vida pessoal futura. Essas actividades, projectos, experiências e prazeres são valiosas em si ou valiosas enquanto meio para algo que tem valor em si. Não valorizo agora algumas partes do meu futuro, mas acabarei por valorizá-las à medida que for envelhecendo e os meus valores e capacidades forem mudando. Quando sou morto, fico privado tanto daquilo que valorizo agora, e que teria feito parte da minha vida pessoal futura, como daquilo que eu iria valorizar. Logo, quando morro fico privado de todo o valor que tem o meu futuro. O facto de me infligirem esta perda é aquilo que, em última análise, torna errado o acto de me matarem. Parece assim que aquilo que torna profundamente errado, prima facie – à primeira vista – o acto de matar qualquer ser humano adulto é a perda do seu futuro […].
A perspectiva segundo a qual o aspecto fundamental que explica o mal de matar consiste no facto de a vítima perder o valor do seu futuro tem consequências óbvias para a ética do aborto. O futuro de um feto normal inclui um conjunto de experiências, projectos e actividades, entre outras coisas, e esse conjunto é igual não só ao do futuro de um ser humano adulto, mas tam­bém ao do futuro de um bebé. Dado que a razão suficiente para explicar por que é errado matar seres humanos após o nascimento é uma razão que também se aplica aos fetos, segue-se que, de uma perspectiva moral, o aborto é, prima facie, profundamente errado.
Este argumento não se baseia na inferência inválida segundo a qual, dado que é errado matar pessoas, também é errado matar pessoas potenciais. A categoria moralmente central nesta análise é a categoria de ter um futuro valioso como o nosso, e não a categoria da personalidade. O argumento a favor da conclusão de que, prima facie, o aborto é profundamente imoral é independente de noções como as de pessoa ou de pessoa potencial.
[…] Obviamente, este argumento do valor de um futuro-como-o-nosso, se for sólido, mostra apenas que o aborto é errado prima facie, e não que é errado em todas e quaisquer circunstâncias. No entanto, dado que a perda sofrida por um feto normal que tenha sido abortado é tão grande como a perda sofrida por um ser humano adulto normal que tenha sido assassinado, o aborto, à semelhança dos actos de matar seres humanos adultos, é justificável apenas por razões extremamente fortes. A perda da própria vida é quase o pior infortúnio que nos pode acontecer. É de presumir que o aborto seja justificável em algumas circunstâncias somente se, caso não se aborte, isso resulte numa perda pelo menos tão grande. Por esta razão, os abortos moralmente permissíveis serão mesmo muito raros, a não ser que ocorram tão cedo que, nessa fase da gravidez, o feto nem seja ainda definidamente um indivíduo. Assim, este argumento mostra que é de presumir que o aborto é profundamente errado, sendo esta presunção muito forte – tão forte como a presunção de que matar outro ser humano adulto é errado.»

Don Marquis, A Razão da Imoralidade do Aborto in A Ética do Aborto – Perspectivas e Argumentos, Organização e tradução de Pedro Galvão, Lisboa, Dinalivro, 2005, pp. 137, 141-143.
1 – Que tese defende o texto?
O texto defende a tese de que o aborto é errado.
2 – Que argumento usa para defender essa tese?
Marquis começa por perguntar por que razão consideramos que matar uma pessoa como nós é na maioria dos casos errado para, à luz da resposta que irá dar a esta questão geral, se interrogar sobre a legitimidade moral do aborto. Em termos mais simples, se concluímos que na maioria dos casos matar uma pessoa como nós é errado, não será que também devemos concluir que matar fetos humanos (abortar) é errado?
Vejamos então o que torna errado matar uma pessoa como nós. Marquis defende que matar alguém como nós é errado porque priva a pessoa que morre de um futuro com valor, de um futuro como o nosso (de experiências como o amor, a amizade, o trabalho, o conhecimento, alegrias, prazeres), isto é, de vivências diversas. Quando alguém é morto, desaparece a possibilidade de desfrutar de todas as coisas valiosas que eventualmente a aguardariam.
Ora, com o feto humano passa-se a mesma coisa. Matá-lo é privá-lo de um futuro com valor, de todas as coisas valiosas que eventualmente o feto viveria e experimentaria. E é irrelevante que, enquanto feto, tenha ou não o estatuto de pessoa e que seja dotado ou não de autoconsciência. Se julgamos que é errado matar o José aos 20 anos, também devemos julgar que é errado matar o José quando era um feto.
Por esta razão, o aborto (matar um feto) é, na grande maioria dos casos, tão errado como matar uma pessoa semelhante a nós. Matar, seja um feto, seja uma pessoa como nós, é o pior dos crimes porque nenhum outro acto tem piores consequências. Note-se que Marquis admite que o aborto é legítimo em algumas circunstâncias extremas, como perigo de vida para a mãe.

3 – Em formato breve, o argumento de Marquis é este:
Se um acto priva uma pessoa como nós de um futuro com valor, então esse acto é errado.
Matar, na maioria das circunstâncias, priva uma pessoa como nós de um futuro com valor (ou de um futuro como o nosso).
Logo, matar é quase sempre moralmente errado.
O aborto consiste em matar um feto humano.
Matar um feto humano é privá-lo de um futuro com valor.
Logo, o aborto é quase sempre moralmente errado (na grande maioria dos abortos não há outras considerações morais suficientemente fortes para suplantar o direito do feto a não morrer).
Qual seria a objecção de Thomson a este argumento?
Thomson eventualmente argumentaria que o que está em jogo no caso do aborto não são simplesmente os interesses do feto ou os direitos que a este reconhecemos. Marquis  não dá a devida importância ao direito que a mulher tem de controlar o que acontece no e ao seu corpo e por isso desvaloriza o direito que a mulher tem de escolher continuar grávida ou não. Logo, é falso, segundo Thomson, que na esmagadora maioria dos casos não haja outras considerações morais que prevaleçam sobre o direito do feto a não morrer.
Como reagiria Marquis a esta crítica?
Como para Marquis a perda da nossa vida é uma das maiores, a bem dizer, a maior das perdas que podemos sofrer, a morte do feto suplanta em gravidade quase todas as perdas que a mãe pode sofrer, excepto o risco de perder a própria vida.

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