quinta-feira, 14 de abril de 2011

O RACIONALISMO DE DESCARTES (XVII) - A MORAL CARTESIANA

O RACIONALISMO DE DESCARTES (XVII)
A MORAL CARTESIANA
Podemos falar de dois momentos da moral cartesiana.
I -  No momento em que Descartes empreende a «aventura» especulativa da dúvida hiperbólica, no momento em que se decide a analisar criticamente todas as ideias ou convicções às quais dera crédito, é necessário que a vida prática seja orientada por máximas que impeçam a irresolução nas nossas acções. A dúvida deve ser exclusivamente teórica. Não são postas em causa ou recusadas as regras que regem a nossa conduta quotidiana. O objectivo de Descartes é fundamentar a ciência e não criticar aquelas instituições que constituem a dimensão prática da vida: instituições políticas, religiosas, etc. É um reformador no plano científico que para efectuar sossegadamente esse trabalho não pensa em reformar a sociedade. A dúvida, exigida no plano intelectual como via de acesso a uma ciência perfeita e pura, é inadmissível no plano prático, do agir, i.e., no domínio moral. Assim, enquanto se constituem os novos fundamentos da árvore do saber e para, rigorosamente falando, a nossa vida não se transformar em algo impossível de ser vivido, devemos formar uma moral provisória que nos oriente nas nossas acções quotidianas e que consiste no seguinte:
1.Manter o domínio de si mesmo e a independência de pensamento;
2.Seguir as opiniões mais moderadas do nosso meio;
3.Seguir as decisões que tomámos mesmo que as razões ou os motivos que as ditaram tenham sido incertos, verosímeis, pouco claros.
Para um conhecimento detalhado da «moral proviria» deve ler-se terceira parte do Discurso. Estes três pontos são a síntese das máximas aí expostas.
II - Num segundo momento, depois de mediante a função depuradora da dúvida teórica termos estabelecido os princípios de uma metafísica e de uma física certas e firmes, a moral adquire uma nova configuração: encontrou uma fundamentação teórica. Caracterizemos de uma forma geral essa moral:
1.A prova da existência de Deus como ser perfeito é o fundamento de uma certa forma de estar no mundo: a atitude perante os acontecimentos independentes de nós é de serenidade porque a ordem do mundo é produto da vontade divina. Isto não implica que não tentemos modificar o curso da natureza, desde que tenhamos sempre presente que devemos seguir a vontade divina em todas as nossas acções.
2.A reflexão metafísica provou a espiritual idade da nossa alma, a radical distinção entre alma (espiritual) e corpo (material). A afirmada superioridade do espírito sobre a matéria é o fundamento de uma atitude que reconhece na ligação aos valores espirituais a verdadeira felicidade. Neste sentido, somos incitados a não sobrevalorizar os «bens deste mundo» - honras, riquezas, luxos, etc.;
3.A investigação metafísica sobre a essência da realidade física negou a visão antropocêntrica e antropomórfica do mundo: não devemos ser ingénuos ao ponto de crer que todo o universo é feito para nós. Isso não faz sentido quando o mundo se revela como imenso, indefinidamente extenso. Além disso, a finalidade do acto criador divino é insondável, não se nos revela. A verdadeira condição humana deve caracterizar-se pela modéstia. O antropocentrismo é puro e simples presunção: seríamos como que conselheiros de Deus e com ele dirigiríamos o mundo.
4.Cada indivíduo deve preferir os interesses do todo ao qual está ligado (cidade, família, Estado) aos seus, embora isso deva verificar-se com moderação porque é errado expormo-nos a um grande mal para pouco beneficiar ou a família ou o país.
Apesar de o sistema preconizado por Descartes ter ficado incompleto, a exposição por nós efectuada tentou mostrar que o pensamento deste filósofo é inegavelmente sistemático. A preocupação cartesiana com a fundamentação radical do saber está intimamente ligada à exigência de ordem e de totalidade. As verdades metafísicas, físicas e morais estão intimamente ligadas entre si e esse elo é evidenciado quando se mostra que as duas últimas só têm sentido baseadas naquelas.

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