terça-feira, 26 de abril de 2011

UTILITARISMO – DUAS OU MAIS VIDAS VALEM MAIS DO QUE UMA?


UTILITARISMO – DUAS OU MAIS VIDAS VALEM MAIS DO QUE UMA?
O leitor é um cirurgião - e um pouco filósofo. É o chefe de uma equipa de primeira linha de especialistas em transplante de órgãos, com um registo imaculado de resultados de sucesso. Na sua lista de espera encontram-se quatro jovens, todos desesperadamente doentes e a precisarem urgentemente de transplantes sem os quais morrerão em breve. Andrea precisa de um transplante de fígado, Barry de coração, Clarissa de pâncreas e Donald de pulmões. Não existem dadores disponíveis. O leitor está desesperado. Não entrou para a medicina por dinheiro; queria ajudar as pessoas e melhorar as suas vidas, e agora encontra-se diante de quatro jovens que estão a morrer. Eles não fizeram nada de errado; teriam vidas longas e felizes à sua frente, se não fosse a doença. Se ao menos houvesse órgãos disponíveis, ficavam todos bem - uma vez que o leitor já ultrapassou os problemas de compatibilidade de tecidos, rejeição e por aí fora.
Quando está prestes a dizer aos seus pacientes que não há esperança, apercebe-se da entrada do novo recepcionista - por sinal, um jovem, Eric. Sabe, pela sua ficha médica, que é saudável. Os seus olhos adquirem um brilho. Pede a Eric que o acompanhe à sala de cirurgia, para lhe mostrar as instalações, claro, claro ... O seu raciocínio silencioso é:
Quero fazer o meu melhor pelo maior número possível de pessoas. Ao matar Eric, tenho a possibilidade de distribuir os seus órgãos pelos jovens Andrea, Barry, Clarissa e Donald, salvando as suas vidas. É verdade, o mundo deixa de ter Eric; isso é mesmo uma triste perda.
Mas ganhou as outras quatro vidas. Quatro pelo preço de uma é um óptimo negócio. Claro que matar Eric na actual conjuntura seria ilegal, mas o que nos interessa é qual a atitude moralmente certa a adoptar. Se não fizermos nada, perdemos Andrea e os outros, mas Eric continua vivo. Se sacrificarmos Eric, perdemos a sua vida, mas ganhamos quatro. Partindo do princípio de que em termos de qualidade de vida – relacionamento com a família, contribuição para a sociedade - todos os indivíduos são semelhantes, a questão moral parece resumir-se apenas à quantidade, ao número de vidas salvas. No entanto, curiosamente, muitas pessoas sentem-se horrorizadas diante do pensamento de matar uma pessoa inocente, mesmo que seja para salvar um número maior.
Moralmente, deve-se ou não matar uma pessoa para salvar a vida de outras?
A maior parte de nós é bastante inconsistente quanto à perspectiva sobre a importância da vida. (A propósito, vamos partir do princípio de que estamos aqui a falar apenas da vida humana.) Em tempo de guerra, muitas pessoas aceitam naturalmente que as vidas de civis inocentes sejam destruídas para assegurar a vida de uma maioria. Ou, aproximando a questão mais das nossas vidas, muitas pessoas irão morrer mais cedo do que poderiam, porque os governos em vez de aumentarem o orçamento para a saúde, mantêm os contribuintes satisfeitos com impostos mais baixos.
Além disso, parte do dinheiro arrecadado pelos impostos é gasto nas artes, em projectos desportivos prestigiados e em entretenimentos do governo. Se este dinheiro não fosse gasto assim, poderia ser usado para melhorar a assistência a idosos e pobres, reduzindo o número de mortes por ano. A nossa sociedade actual funciona de maneira a que muitas vidas se perdem apenas para assegurar uma melhor qualidade de vida a outros.
Porém, o leitor, o cirurgião, propõe matar Eric para salvar quatro vidas, não apenas para melhorar a sua qualidade de vida. Portanto, será que não devemos apoiar o seu raciocínio?
Se pensarmos que sim, podemos seguir, um pouco imaturamente, a doutrina moral conhecida como «utilitarismo», segundo a qual a atitude certa é aquela que trará (ou terá mais probabilidade de trazer) felicidade a um maior número de pessoas. Será que é isso que devemos procurar? A maior parte das pessoas diria não à ideia. «Ninguém tem o direito de usar os meus órgãos contra a minha vontade», insistem.
Muitos declaram que simplesmente temos direitos sobre nós - somos donos de nós mesmos - e que é moralmente errado que alguém, contra a nossa vontade, nos invada, tire os nossos órgãos ou nos mate, a menos que tenhamos nós próprios feito alguma coisa errada. Alguns vão mais longe, afirmando que também temos direitos sobre o nosso trabalho e sobre os resultados do nosso trabalho; por isso, a maior parte dos impostos é uma forma de roubo. Estes direitos são o fundamento da moralidade e essa moralidade faz do indivíduo um rei. É essa a ideia.
Se o indivíduo é um rei, é moralmente errado provocar a morte de um inocente como meio para alcançar um fim, por mais nobre que seja, como é o caso de salvar a vida de outros quatro. No entanto, a morte de Eric é necessária para que os outros possam viver. Claro que, por vezes, pessoas são mortas em resultado de alguma acção moralmente correcta, no entanto, isso não acontece intencionalmente, mesmo que tenha sido previsto. Matar civis inocentes não costuma ser um objectivo de guerra; é antes um efeito secundário muito devastador. É costume argumentar-se que essa morte não intencional de civis se justifica numa guerra justa e é moralmente diferente da morte de civis intentada por alguns terroristas.
Em oposição à ideia de fazer do indivíduo um rei e delinear a distinção entre resultados intencionais e efeitos secundários, o ideal utilitário da felicidade para a maioria coloca simplesmente em primeiro lugar a questão de qual será o resultado consensual no que a ela diz respeito. Sejam as mortes um efeito secundário ou intencionais, se o resultado for o mesmo, então, do ponto de vista utilitário, não existe
nenhuma diferença moralmente relevante. Do ponto de vista utilitário, não existe nenhuma diferença, por exemplo, entre actos de guerra e actos de terrorismo, se as consequências forem as mesmas.
Mesmo que adoptemos a perspectiva utilitária, podemos encontrar uma falha no argumento do cirurgião. Os indivíduos saudáveis sentir-se-iam extremamente inseguros (da mesma maneira que se sentem em relação a actos terroristas indiscriminados) se existisse um procedimento de os raptar e matar para lhes tirar os órgãos. Lembre-se de que aqueles que beneficiam com o tratamento também podem tornar-se eles próprios vítimas. Devido a esta insegurança, a felicidade total pode muito bem diminuir numa sociedade que abarque tais cirurgiões. Claro que isto só acontece se as pessoas souberem que esse procedimento está a ser aplicado. Imagine que era uma política secreta do governo? Bem, é aqui que o raciocínio utilitário em demasia pode ser prejudicial à nossa saúde. Está com um aspecto saudável? Talvez seja melhor evitar passar muito perto de um hospital de transplantes.
Peter Cave, Duas Vidas Valem Mais Que Uma? Academia do Livro, pp 23-27

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