sexta-feira, 22 de março de 2013

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE KANT


Immanuel Kant


Introdução ao Pensamento de Kant: A resposta à questão «O que é o homem?»

PRÓLOGO

Kant é um filósofo cujo pensamento foi por diversas vezes interpretado como o mais qualificado "certificado de óbito" que se passou à metafísica. Esta reputação está, contudo, longe da verdade. Como veremos. Kant irá suprimir um determinado tipo de metafísica mas não a metafísica.
O que é a metafísica? É uma disciplina cujos objectos de estudo são realidades que transcendem o campo da nossa experiência. Para Kant os problemas metafísicos são, fundamentalmente, três: Deus. Imortalidade da alma e liberdade. Ao longo da sua história a metafísica tem sido a tentativa de responder cientificamente a estas três questões essenciais da razão humana.
Qual a situação da metafísica no tempo de Kant? O quadro não é famoso: ela é um campo de disputas constantes e intermináveis, nenhuma tese obtém unanimidade, reina a discórdia. Esta ausência de consenso não é, contudo, um dado recente mas sim uma constante da própria história da metafísica. A aventura metafísica, desde os seus primórdios, tem sido a sucessão de "guerras internas" que bloquearam o seu desenvolvimento e arruinaram o seu crédito junto da comunidade dos sábios e dos intelectuais. Contudo, nota imediatamente Kant, o descrédito e o desprezo de que são alvo os metafísicos não deve conduzir-nos ao desprezo e à indiferença perante os problemas de que trata a metafísica: Deus, liberdade e imortalidade da alma. A metafísica apesar do descrédito em que caiu é um "destino singular da razão humana", corresponde a uma vocação natural, que não pode ser recusada. É próprio do homem procurar resposta para os grandes problemas metafísicos. A metafísica é uma necessidade humana que nunca desaparecerá.
Ao longo da sua história a metafísica tem tido uma pretensão fundamental: constituir-se como conhecimento científico de realidades que estão para lá da experiência. O que tem acontecido até agora? A metafísica, ao contrário da Física e da Matemática, não conseguiu encontrar o caminho do conhecimento seguro e digno de crédito. Então temos razões para duvidar da possibilidade de um conhecimento científico de realidades metafísicas. Até agora a metafísica não conseguiu constituir-se como ciência. Será que esse insucesso se deve à incapacidade dos pensadores que abordaram os problemas metafísicos ou será que isso se deve ao facto de a metafísica não poder ser mesmo uma ciência? A resposta de Kant é muito simples: a razão humana não pode evitar as questões metafísicas — são o seu destino — mas não é capaz de lhes dar uma resposta científica. Ao colocar a questão da cientificidade da metafísica Kant não esconde que a resposta está dada: a metafísica não é uma ciência. Tatará simplesmente de mostrar por que razão ela não o pode ser. Assim iremos ver Kant perguntar em que condições é possível o conhecimento científico, ou seja, como conhecemos e o que podemos conhecer cientificamente. Definidas e explicitadas as condições gerais do conhecimento científico demonstra-se ao mesmo tempo que não podemos conhecer realidades metafísicas.
A explicação essencial da falta de credibilidade da metafísica tem a ver com o facto de que os filósofos, que a pretenderam transformar numa ciência, usaram de uma forma dogmática uma faculdade chamada razão. Confiaram cegamente nas capacidades desta e não investigaram se estava no poder da razão responder cientificamente às questões metafísicas. Se o tivessem feito descobririam que a solução científica desses problemas ultrapassa o poder da razão.
Para evitar que cada qual fabrique uma metafísica a seu modo (para evitar, no fundo, que a filosofia seja um interminável campo de batalhas, em que todos se reconhecem vencedores e em que nada de positivo se produz) Kant vai criticar (analisar, determinar capacidades e limites) não este ou aquele filósofo mas sim a própria Razão. Daí a obra que descreve este "julgamento", a Crítica da Razão Pura, merecer o nome de "Autocrítica da Razão".
A análise dos poderes e limites da própria Razão vai determinar que ela é incapaz de resolver as questões metafísicas de forma científica e que só pode justificar a sua crença nas realidades metafísicas. Assim, julgava Kant, já não se poderá escrever metafísica ao gosto de cada filósofo mas sim de acordo com as capacidades da razão enquanto tal.

A atitude de Kant acerca da metafísica corresponde a um projecto de reabilitação. Não podemos ver em Kant o "coveiro" da metafísica: a negação da metafísica enquanto ciência não implica a negação da metafísica. Bem pelo contrário, só negando à metafísica um estatuto que ela não pode nem nunca poderá ter — o estatuto de ciência — é que poderemos constituir uma metafísica adequada às capacidades da razão humana e, portanto, legítima, digna de crédito. A filosofia kantiana tem uma intenção vincadamente metafísica: o seu objectivo é o de reformar essa disciplina, dar-lhe credibilidade. Ao longo desta unidade veremos que Kant demonstra o que a metafísica não pode ser (uma ciência) 11 para mostrar o que ela pode ser (uma crença ou fé racional). Deus, liberdade e imortalidade só podem ser objectos de uma fé ou crença para a qual encontraremos, como mais tarde se verá, razões ou justificações de ordem moral.
É a esse longo percurso que nos conduzirá do momento negativo — a negação de que a metafísica possa ser uma ciência — ao momento positivo — a afirmação da metafísica como fé racional — que iremos dar início.
Galileu, retraio de Justus Sustermans.
' Apesar de os textos introdutórios da Crítica da Razão Pura darem a impressão de o problema da cientificidade da metafísica ser uma questão em aberto — Kant cria aparentemente um certo "suspense" — a verdade é que a sorte da metafísica já está traçada antes de o tribunal da razão iniciar o seu processo. Kant, sem o dar explicitamente a entender empreende a investigação transcendental do conhecimento — a análise das condições que nos permitem conhecer — para justificar aquilo que na sua mente é um dado adquirido: a metafísica não é uma ciência.
É a partir do sucesso de ciências — Matemática, Física e Lógica — cuja validade considera indubitável, que Kant justifica o fracasso da metafísica na sua tentativa de se constituir como ciência ou conhecimento puramente racional do supra-sensível.
Kant parte de um facto (Faktum): Matemática e Física (essencialmente esta) são ciências constituídas. A metafísica não. Sobre ela não podemos dizer: "Aqui a tendes, podeis estudá-la." Acerca da Matemática e da Física não faz sentido perguntar se são possíveis como ciências uma vez que de facto estão constituídas como tais. A única coisa que devemos perguntar é: "Como é possível o conhecimento científico?" para justificarmos esse facto que é a ciência. Quanto à metafísica Kant perguntará se ela é possível como ciência (e não como é possível pois ela não é uma ciência constituída) para justificar um facto: a metafísica não é uma ciência.

PRIMEIRA PARTE

A resposta à questão «O que posso conhecer?»

1.A "REVOLUÇÃO COPERNICIANA": UM NOVO MODO DE ENTENDER O CONHECIMENTO

Com a designação "Revolução Coperniciana" Kant refere a decisão de Copérnico, inauguradora de uma nova cosmologia: a passagem do modelo geocêntrico ao modelo heliocêntrico. Por que razão é esta decisão tão importante para Kant? Por que razão se lhe refere simbolicamente para expressar a atitude da sua filosofia face ao conhecimento?

Na base da substituição referida está a exigência da Razão(1) de não se subordinar à ordem sensível, à experiência, mas, ao contrário, subordinar a experiência, os dados empíricos, a princípios e formas impostos pela própria Razão, i. e., pela nossa faculdade de conhecimento em geral. Copérnico considerava o modelo geocêntrico (que a princípio defendeu) como "monstruoso", demasiado complexo, exagera-damente complicado. Parecia-lhe antinatural que um sistema tão complicado fosse o espelho da Natureza. Então a recusa do geocentrismo é uma exigência da Razão, uma decisão de autonomia da parte desta. Esta rebelião não é a defesa de um sistema já estabelecido e considerado melhor que o ptolomaico ou geocêntrico. Nessa revolta contra a complexidade a que a dependência da Razão face à experiência nos condenava, a Razão tira de si mesma o princípio a que deve obedecer o conhecimento da Natureza. Tal princípio, também conhecido por princípio de economia, diz: "A Natureza age pelas vias mais simples." Este princípio não foi tirado da experiência (esta dá-nos uma multiplicidade complexa de fenómenos). Foi a Razão que o pôs como fundamento da investigação da Natureza. Foi esta simplicidade defendida por Copérnico que levou Galileu e sobretudo Kepler e Newton a concluírem a nova astronomia e cosmologia.
Em suma, segundo o próprio Copérnico, o seu abandono do sistema geocêntrico (que retirava os seus princípios mais gerais da observação imediata ou empírica, ie., subordinava a Razão à experiência) deveu-se sobretudo ao facto de ele chocar o princípio de economia, princípio racional por excelência. O que motiva a revolução é a vontade de autonomia da Razão face à experiência, embora isso não implique virar as costas ao plano empírico. A revolução metodológica consiste em rejeitar que a experiência possa fornecer à Razão os princípios do seu conhecimento. Nesta mudança de método está o fundamento de toda a ciência. São os fenómenos que se devem regular pela Razão e não esta pelos fenómenos.
Só na Razão, faculdade de conhecimento em geral, estão as estruturas a priori que permitem a constituição do conhecimento objectivo, universal ou necessário e possibilitam um outro conhecimento que não o meramente factual ou empírico.
Tal como Copérnico substituiu o geocentrismo pela ideia de que a Terra girava em torno do Sol, Kant substituiu uma concepção passiva do conhecimento que fez deste registo da realidade pela ideia de que a nossa faculdade de conhecimento impõe as suas formas e as suas leis à realidade, não sendo determinada pelos objectos. Só esta revolução metodológica permite fundamentar o conhecimento científico. 
O termo Razão é aqui utilizado significando o conjunto das faculdades de conhecimento. Por uma questão de simplificação pode substituir-se pela expressão "o espírito humano".
Como mais adiante veremos, Kant irá referir-se à razão em sentido mais restrito, como faculdade do sujeito humano que produz ideias, distinguindo-a de outras duas faculdades (o entendimento, que produz conceitos, e a sensibilidade, que nos dá intuições)


2. A DEFINIÇÃO DE CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Para Kant, falar de ciência é falar de um determinado conjunto de conhecimentos que se exprimem em enunciados a que dá o nome de juízos sintéticos apriori.
Um conhecimento científico é expresso num juízo, constitui uma síntese ou unidade e não deriva da experiência.
Para melhor se entender o que é um juízo científico, Kant distingue-o dos juízos analítico e sintético a posteriori.
Todos os juízos consistem na relação entre um sujeito e um predicado, podendo este ser afirmado ou negado do sujeito. A relação, como veremos imediatamente, assume várias formas e tem fundamentos diversos.

2. l. O juízo analítico
Que relação existe entre o sujeito e o predicado? O predicado está contido no sujeito e portanto basta analisar o sujeito para explicitar ou revelar o predicado. É um juízo explicativo, pois o predicado somente explica aquilo em que o sujeito consiste, revela a sua essência.
E um juízo de identidade ou uma tautologia, pois no predicado repete-se por outras palavras o que o sujeito é, o conceito do sujeito. Por isso mesmo não é um juízo cognitivo ou extensivo. É um juízo fundado no princípio de não contradição porque na análise do sujeito o predicado ou predicados obtidos só têm validade se não contradisserem, se não entrarem em contradição com o sujeito, melhor dizendo, com o conceito que constitui o sujeito do juízo.
É um juízo universal e necessário porque aquilo que se diz do sujeito vale para todos os tempos e lugares e não pode deixar de ser assim.
Exemplo: "O triângulo é um polígono de três ângulos."
Por simples análise do sujeito obtém-se o predicado: dizer "triângulo" e "polígono de três ângulos" é o mesmo (tautologia, repetição). O predicado nada acrescenta ao sujeito, unicamente explicita o que neste já está implícito.
Esta explicitação nada de novo nos faz conhecer, não aumenta o nosso conhecimento: não produz um juízo cognitivo.
O predicado assim obtido não contradiz o conceito do sujeito, pois o que ele enuncia é precisamente aquilo em que o sujeito consiste. Posso atribuir P a S porque P não contradiz S.
Por isso mesmo este juízo vale universalmente e é necessário. É por ser necessário que tem validade universal. Um triângulo tem de ser, não pode não ser um polígono de três ângulos. Ninguém pode pôr em causa o que este juízo enuncia.

2.2.    Juízo sintético a posteriori
Coloca-nos numa situação contrária à do juízo analítico. Como o próprio termo o indica, não é apriori (independente da experiência, i. e., universal e necessário).
Sendo sintético, a atribuição do predicado ao sujeito não é resultado de uma inspecção ou análise lógica do sujeito. Aqui o predicado é algo que se acrescenta ao sujeito, não se deduz deste porque não está contido no seu conceito. O predicado acrescenta-se ao sujeito, não se tira deste.
Exemplo: "Todos os habitantes desta casa são velhos."
É um juízo sintético, pois não podemos obter o predicado "velhos" por simples análise lógica do conceito do sujeito "habitantes desta casa". A ligação entre "velhos" e "todos os habitantes desta casa" é o resultado de várias observações num certo espaço e num certo tempo. A atribuição do predicado ao sujeito tem o seu fundamento na experiência. O predicado "velhos" não pode surgir da consideração pura e simples do conceito "habitantes desta casa". Por palavras simples, eu preciso de os ver para dizer o que são.
O juízo sintético a posteriori não é um juízo propriamente científico, embora aumente o nosso conhecimento, pois nele o predicado acrescenta algo ao sujeito, é uma novidade e não uma repetição. É um juízo cognitivo mas não é um juízo que exprima um conhecimento científico. Porquê? Porque, segundo Kant, a ciência consiste em juízos cuja universalidade ou necessidade é estrita, isto é, não admite excepções: é assim e sempre foi e será assim. Se é verdade que neste momento todos os habitantes da casa são velhos, é possível (muito provável) que no futuro surjam habitantes jovens e que no passado elementos jovens a tenham habitado. Assim não há uma ligação necessária entre os dois objectos da minha experiência. Não é possível dizer que os habitantes desta casa sempre foram e sempre serão velhos. Os juízos sintéticos a posteriori são contingentes (não necessários), pois se é contraditório que o triângulo tenha mais de três ângulos (é assim e não pode ser de outro modo) não é contraditório ou impossível que a casa venha a ter habitantes jovens. Se agora isso não acontece não faz sentido dizer que há impossibilidade lógica ou real desse acontecimento.
Os juízos sintéticos a posteriori, uma vez que não são independentes da experiência, não são nem necessários nem universais em sentido estrito. São juízos de facto, dependentes da observação, só válidos para quem observa e valendo somente para o momento ou o tempo da observação.

2.3.    Juízo sintético apriori
Se não existissem juízos deste tipo não poderíamos falar de conhecimento científico.
Os analíticos são tautológicos, não cognitivos, pois, apesar de universais e necessários (a priori), não fazem mais do que explicitar o já dado no conceito do sujeito e dele não nos fazem sair.
Os juízos sintéticos a posteriori fazem-nos sair do conceito pois acrescentam-lhe algo que ele não contém por si, mas, embora aumentem o nosso conhecimento, não nos fornecem senão um conhecimento factual, empírico, contingente, em suma, não científico.
Os juízos sintéticos a priori não serão juízos analíticos porque aumentarão o nosso conhecimento nem juízos a posteriori porque serão absolutamente universais e necessários, i. e., de validade independente da experiência.
Exemplo de Kant: "Todo o acontecimento tem uma causa."
O juízo é sintético pois o predicado (tem uma causa) não está contido no conceito de acontecimento. O predicado só estaria contido no sujeito se em vez de acontecimento falássemos de efeito: "Todo o efeito tem uma causa."
No juízo "Todo o acontecimento tem uma causa" eu atribuo o predicado ao sujeito mas para isso não recorro, em termos de validade e de fundamentação, à experiência, à observação. A experiência já o sabemos é limitada, limita-se ao aqui e agora, não pode dizer: "todos os acontecimentos" porque não temos a possibilidade de intuição empírica de todos os fenómenos, passados, actuais e futuros. Além disso, dizer que "tudo o que acontece tem uma causa" é afirmar que todos os acontecimentos passados, presentes e futuros tiveram, têm e terão uma causa. Este juízo necessário não pode, como é óbvio, derivar da experiência: não é, portanto, um juízo sintético a posterior mas sim sintético a priori.

3. A DOUTRINA KANTIANA DO CONHECIMENTO


A "Revolução Coperniciana" coloca o "objecto" na dependência do sujeito, pois, como em seguida se verá, é o sujeito que, mediante o seu equipamento cognitivo (formas da sensibilidade e do entendimento), constitui o objecto de conhecimento propriamente dito. Daí a investigação transcendental perguntar pelas condições a priori do conhecimento. A gnosiologia kantiana consiste numa reflexão sobre as condições que tornam possível o conhecimento. Kant não duvida em momento algum da possibilidade do conhecimento. Ciências como a física e a matemática provam que o conhecimento é um facto indiscutível. Por haver de facto conhecimentos científicos, Kant não perguntará se é possível o conhecimento, mas sim como é ele possível. Trata-se, por conseguinte, de esclarecer as condições de possibilidade de um facto (o conhecimento científico) e não de mostrar se há ou não conhecimentos científicos.

Vejamos então como o sujeito constrói a objectividade, ou seja, como é que a sensibilidade e o entendimento colaboram na constituição do conhecimento científico.

3.1. A "Estética Transcendental": o estudo do papel da sensibilidade no processo de conhecimento
Para haver conhecimento é preciso, como é óbvio, que haja coisas para conhecer. Isto implica que temos de entrar em contacto com elas, i. e., receber "informações" ou dados delas provenientes.
Como começa o conhecimento? Segundo Kant ele começa com a intuição. A intuição é o acto pelo qual recebemos dados ou algo para conhecer. De acordo com Kant é a intuição que nos dá objectos, ou seja, aquilo que podemos conhecer*".
Como é que intuímos, ou seja, quais as condições que tornam possível entrar em contacto directo com as coisas e receber delas "informações" ou dados (objectos)?
Segundo Kant toda a nossa intuição está condicionada por duas formas: o espaço e o tempo. Estas duas formas são estruturas da sensibilidade. Logo toda a nossa intuição será simplesmente sensível: só temos intuição de realidades sensíveis ou empíricas, ou seja, de realidades que podemos espacializar e temporalizar. Assim, todo o conhecimento começa com a intuição sensível, ou seja, com a recepção de dados ou impressões sensíveis mediante duas formas com as quais a sensibilidade está "equipada": o espaço e o tempo. Intuir é, portanto, receber dados empíricos, espacializando-os e temporalizando-os.
Exemplificando:
Um automóvel, passa em frente à minha casa ao meio-dia, fazendo muito barulho e buzinando constantemente. O automóvel provoca em mim uma determinada impressão sensível. Eu recebo esta impressão sensível de uma determinada forma, isto é, espacializo-a e temporalizo-a porque me refiro ao barulho do automóvel, como verificando-se em frente à minha casa (espacialização) e a uma determinada hora (temporalização). Assim vê-se que a intuição sensível consiste em estabelecer uma relação espácio-temporal entre as impressões sensíveis provenientes das coisas (no exemplo, do automóvel).
Só é possível a intuição de realidades que possam ser enquadradas no espaço e no tempo. Essas realidades são sensíveis porque posso referir-me a elas como acontecendo num determinado lugar — ocupam esse lugar — e num determinado momento — acontecem agora, aconteceram antes, acontecerão depois. As realidades não espacializáveis nem temporalizáveis escapam à nossa intuição, não estão em relação efectiva connosco, não temos qualquer experiência delas. E o caso de Deus, realidade metafísica: sendo incorpóreo não está em lugar algum, não podemos dele dizer que está "aqui", "ali" ou "acolá" (não o podemos espacializar); sendo eterno não podemos referir-nos a ele como existindo "agora", como tendo existido "antes", etc., (não é temporalizável).
Já sabemos qual a função do espaço e do tempo. São a nossa maneira de intuir, de receber dados empíricos ou sensações provenientes das coisas, nada podendo nós intuir sem essas duas formas da nossa sensibilidade.
(1) Note-se que a intuição não é conhecimento propriamente dito: ela não nos dá conhecimentos mas simplesmente os objectos do conhecimento.
Qual a sua natureza? São estruturas universais e necessárias: universais, porque toda a nossa intuição ou experiência é condicionada por elas; necessárias porque sem elas não nos é possível ter experiência significativa das coisas. Estamos, ao nível da nossa sensibilidade, constituídos de tal modo por estas duas formas que não podemos dizer: "Algo aconteceu em lugar nenhum e em momento nenhum." Tudo aquilo que é objecto da nossa experiência tem de ser enquadrável mediante essas duas formas.
Já sabemos que universal e necessário são, em Kant, sinónimos de a priori. Espaço e tempo são formas a priori da sensibilidade. Tentemos clarificar este aspecto:
O espaço não é algo que se obtenha a partir da experiência ou intuição empírica. Não é por eu intuir determinadas coisas como situadas aqui, ali e acolá, que eu formo a "noção" de espaço. Bem pelo contrário, o espaço tem de ser uma estrutura da minha sensibilidade, porque ao dizer aqui, ali e acolá, eu já estou a espacializar. Com o tempo verifica-se o mesmo. Eu recebo determinadas impressões, umas agora, outras depois, e isso significa que receber os dados sensíveis implica temporalizá-los. Deste modo, a intuição do tempo não deriva da intuição dos dados empíricos, mas é condição a priori da experiência que tenho.
Espaço e tempo são as formas da nossa intuição, são a maneira como intuímos, ou seja, como recebemos os dados sensíveis. Não são o conteúdo da intuição sensível, ou seja, não são aquilo que intuímos, não são objectos da intuição: espaço e tempo não são dados sensíveis nem coisas. Por outras palavras, aquilo que torna possível a intuição (recepção) dos dados empíricos não pode ser de natureza empírica.
Em suma: espaço e tempo são a condição de possibilidade a priori (não empírica) de qualquer experiência. Não são objectos de nenhuma intuição empírica mas aquilo que torna possível a intuição empírica de objectos. Não são dados empíricos mas a "linguagem" que usamos para falar dos dados empíricos. A esses dados empíricos enquadrados no espaço e no tempo, espacializados e temporalizados, dá Kant o nome de fenómenos. Estes são os objectos da intuição sensível'"



1 Note-se que usamos, de uma forma liberal, os termos "intuição sensível" e "intuição empírica" como idênticos, para facilitar a exposição. Tal identificação embora tolerável não é absolutamente correcta. Em Kant, rigorosamente falando, a intuição sensível é a unidade entre a intuição pura — o espaço e o tempo — e a intuição empírica. A intuição sensível não é sem mais a intuição empírica: é a intuição empírica enquanto condicionada por duas formas puras (e. t.).
Espaço e tempo: formas da intuição e intuições a priori
Embora fale mais do espaço e do tempo como formas a priori da intuição empírica Kant também lhes dá o nome de intuições a priori ou puras. Que quer dizer? Intuir só e simplesmente o espaço e o tempo não é intuir nada de empírico. Espaço e tempo são formas puras. Ao intuí-los eu antecipo muito simplesmente o modo como receberei os dados empíricos ou sensações: recebê-los-ei espacializando-os e temporalizando-os.
Espaço e tempo não são intuições dos objectos mas sim, em termos rigorosos, a intuição das condições segundo as quais as coisas se manifestam e produzem em mim sensações. Ao intuir o espaço e o tempo, eu não intuo as coisas ou a sua manifestação. Intuo simplesmente a forma dessa manifestação, a maneira segundo a qual poderei receber as impressões sensíveis que as coisas provocam, a forma de as coisas se relacionarem comigo, com a minha sensibilidade.
Dizer que espaço e tempo são intuições a priori é dizer, previamente à manifestação das coisas, que elas têm de aparecer num determinado espaço e num determinado tempo, caso contrário não se poderiam relacionar com a minha sensibilidade, ser coisas para mim ou fenómenos.
Assim se pode compreender que as formas puras da sensibilidade são, por si mesmas, formas vazias, puras possibilidades ou, como Kant diz, intuições formais, quadros de recepção das impressões sensíveis. A intuição formal espácio-temporal não fornece qualquer conteúdo. As impressões sensíveis dão-se num enquadramento espácio-temporal (só neste enquadramento as coisas impressionam o sujeito), mas não são dadas pelo espaço e pelo tempo. Em linguagem kantiana, a intuição pura, condição de possibilidade da intuição empírica ou sensação, não dá objectos mas possibilita que eles sejam dados.


• CONCLUSÕES FUNDAMENTAIS DA "ESTÉTICA TRANSCENDENTAL"

Esta parte da Crítica da Razão Pura tem o nome de Estética (do grego aisthésis que significa sensação) transcendental (significa condição de possibilidade a priori de algo) porque investiga as condições a priori que tornam possível a recepção de impressões sensíveis ou sensações.
Essa investigação chegou a várias conclusões importantes:
1    — Todo o conhecimento começa com a experiência.
Para conhecermos é preciso que algo nos seja dado. Ora é a intuição que nos dá objectos, ou seja, algo para conhecer. Toda a nossa intuição é sensível consistindo na recepção de dados empíricos ou impressões sensíveis mediante duas formas que temos de as receber: o espaço e o tempo. A experiência é precisamente esta recepção, espácio-temporalmente condicionada, de dados empíricos. Sem ela nada teremos para conhecer, não haverá objectos para o nosso conhecimento. Por isso todo o conhecimento começa com ela.
2    — Espaço e tempo não são coisas nem impressões sensíveis.
São as formas que tenho de "falar" das coisas e de organizar ou relacionar as impressões sensíveis. São, portanto, formas do sujeito (da sensibilidade do sujeito) que lhe permitem intuir os objectos. Só há experiência ou intuição empírica das coisas porque no sujeito há duas formas (espaço e tempo) que permitem receber as impressões sensíveis.
3    — Espaço e tempo são formas "a priori".
 Como tornam possível a experiência ou a intuição sensível não derivam desta. Sendo "a priori", espaço e tempo são, portanto, também estruturas transcendentais, o que significa que são a condição de possibilidade não empírica de qualquer experiência.
Segundo Kant, a intuição corresponde a uma relação imediata com as coisas e verifica-se quando algum objecto nos é dado. Isto significa que intuir é a capacidade de receber deteminados dados. Portanto, a intuição humana não é criadora ou produtora das coisas com as quais se relaciona. Se a intuição é uma capacidade receptiva, temos de perguntar em que condição é possível a recepção dos dados. Só o é se estivermos "equipados" com determinadas estruturas receptivas, isto é, se houver em nós determinadas formas de recepção. A essas formas dá Kant o nome de espaço e tempo. Espaço e tempo são formas a priori da sensibilidade, não derivam da intuição das coisas, mas são a condição que torna possível essa intuição.
Espaço e tempo são assim a forma e não o conteúdo da intuição, no sentido em que sem elas não poderíamos estabelecer qualquer relação entre aquilo que nos é dado, ou seja, a recepção dos dados não faria sentido.
Assim, de um lado temos as impressões sensíveis (a que Kant chama a matéria do fenómeno) e do outro a forma de receber essas impressões e de as relacionar (a forma do fenómeno). Os dados ou impressões sensíveis são aquilo que intuímos e o espaço e tempo são a forma como intuímos. Assim, o fenómeno será o dado sensível, espacializado e temporalizado.
4    — Embora dotada de formas a priori, a sensibilidade define-se como capacidade receptiva das impressões mediante certas condições.
As formas da sensibilidade são o modo de recepção dos objectos, melhor dizendo, das impressões que as coisas provocam, são os quadros da receptividade. São o contributo do sujeito na constituição da intuição sensível. Se relacionar as impressões em termos espácio-temporais denota uma certa actividade, é, contudo, a receptividade que caracteriza propriamente a sensibilidade.
5    — Intuímos as coisas simplesmente como elas nos aparecem, e não em si.
A intuição possível ao homem é a captação das impressões, das propriedades das coisas que posso expressar em termos espácio-temporais. Em linguagem kantiana, a sensibilidade intui fenómenos, aquilo que se pode enquadrar no espaço e no tempo e não as coisas em si (fora das coordenadas espácio-temporais). Temos assim estabelecida uma distinção fulcral da filosofia kantiana: a distinção fenómeno-coisa em si.
6 — Os juízos sintéticos a priori são possíveis em Matemática porque o espaço e o tempo são intuições a priori ou formas a priori da sensibilidade.
Todos os juízos da Matemática são construídos com base no espaço (geometria) e no tempo (a série numérica 1,2,3 baseia-se na sucessão temporal: 2 depois de l e antes de 3, ou seja, o número surge pela adição sucessiva da unidade no tempo). Versando os juízos matemáticos sobre o espaço e o tempo e sendo estes estruturas a priori do sujeito, i. e., independentes da experiência, esses juízos podem ser universais e necessários, não dependentes da intuição empírica quanto à sua validade.
Exemplo no caso da Geometria: "A linha recta é a distância mais curta entre dois pontos." Este juízo é sintético (no conceito de linha recta — conjunto de pontos alinhados — não está contida a ideia de distância) e a priori (é verdadeiro sem que seja preciso medir todas as distâncias, i. e., sem que seja necessário recorrer à experiência. Por isso é universal e necessário, supondo, já que fala de distância, a intuição a priori do espaço).



3.2.A "Analítica transcendental": o papel do entendimento no processo cognitivo

Vimos qual o contributo da sensibilidade para a constituição da objectividade, ou seja, para a constituição do conhecimento científico : sem ela e as suas formas a priori não teríamos objectos para conhecer.
Qual a razão de ser da "entrada em cena" deste novo actor do processo de conhecimento que é o entendimento?
Tal tem a ver com o facto de que embora sem a sensibilidade a ciência não tenha objectos aquela não nos pode dar conhecimento científico dos objectos. Explicitaremos este ponto mais tarde. Por agora vejamos com que estruturas ou formas está o entendimento apetrechado, e qual a sua natureza e origem.
3.2.1. A "dedução metafísica "(1) das categorias
As categorias são conceitos a priori do entendimento: não derivam da experiência.
Ao contrário dos conceitos empíricos (gato, árvore, homem, etc.), não têm origem no processo abstractivo que parte da observação empírica. A sua origem é a priori, reside na espontaneidade produtora do entendimento. Ora, os conceitos fundamentais do entendimento, as categorias, são em número de doze. Qual o fio condutor que levou Kant à descoberta destes conceitos e só destes? É isso que Kant nos explica naquilo a que chamou "dedução metafísica" dos conceitos puros do entendimento.
Vejamos sucintamente em que consiste.
Usar um conceito é, segundo Kant, fazer um juízo por meio desse conceito. Posto que o entendimento é a faculdade de usar conceitos, pode dizer-se, por conseguinte, que é a faculdade de formular juízos. Se assim é, parece que podemos descobrir as categorias ou conceitos puros mediante um exame das formas dos próprios juízos. Kant crê que, atendendo à sua estrutura lógica, são possíveis quatro formas diferentes de juízos e que em cada uma destas formas se dá a possibilidade de três tipos de juízos diferentes.
Vejamos o cso dos juízos sob a forma de relação
Juízos sob a forma de relação
Juízo categórico: "Esta mesa é amarela." Aqui faz-se uma distinção entre a coisa e uma das suas propriedades ("amarela"). A impossibilidade de identificar a coisa com as suas propriedades torna-se patente pelo facto de o conceito "propriedade", para não perder todo o seu significado, ter de ser uma propriedade de alguma coisa. Esta distinção, sem a qual o juízo categórico não seria possível, pois confundir-se-ia sujeito e predicado, é possibilitada por um conceito puro do entendimento (o conceito de substância). Para distinguirmos a coisa das suas propriedades, o sujeito do predicado, devemos conceber a coisa ou o sujeito como substância, isto é, como algo que possui atributos, propriedades, que é o suporte delas, o seu substrato, o que subjaz a todas elas, mas que não se reduz a nenhuma delas.
Se não possuíssemos o conceito de substância e não o aplicássemos a um determinado conjunto de sensações, não poderíamos formular proposições como "a rosa é roxa", "a rosa é fragrante". Em todas estas proposições concebemos a rosa como substância, e a cor, o odor, como propriedades suas.
Prescinda-se do conceito de substância e não poderemos emitir juízos, falar acerca das coisas, já que sempre que formulamos um juízo com um sujeito e um predicado ("os gatos são mamíferos", "os corpos são pesados") concebemos o sujeito como substância e os predicados como propriedades ou acidentes daquela. A categoria "substância" é um conceito puro do entendimento e por isso uma categoria pois não formámos o conceito "substância" por abstracção. Ao contrário, é por meio do conceito "substância" que distinguimos no âmbito empírico as coisas e as propriedades das coisas.
Juízo hipotético: "Se está a chover então o cais está molhado." Este juízo não pode ser formulado a não ser por intermédio do conceito de causa ou de dependência. Na verdade ele exprime uma relação causal entre o facto de chover e o estado do cais. Sem o conceito de causa só poderíamos dizer que depois de chover o cais ficou molhado, só poderíamos expressar uma relação de sucessão temporal. Neste juízo não nos limitamos a dizer "está a chover" e "o cais está molhado", i. e., não nos limitamos à observação dos acontecimentos, deixando-os desligados mas dizemos que um depende de outro. O conceito de causa não procede ou deriva da experiência, é um conceito a priori do entendimento, uma vez que nos permite expressar como causalmente ligado o que é dado empiricamente sem conexão ou ligação necessária.
Juízo disjuntivo: Se P é verdadeiro então Q é falso.
P    Q
"as reuniões são presididas    "as reuniões não são
pelo presidente"    presididas pelo presidente"
O contrário é também verdadeiro: "Se P é falso então Q é verdadeiro." "P" e "Q" dependem um do outro; afectam-se mutuamente. Diz então Kant que o juízo disjuntivo expressa a categoria de comunidade.

3.2.2. A dedução transcendental das categorias: a demonstração de que as categorias são necessárias para a constituição da objectividade ou do conhecimento científico
Referida a origem não empírica das categorias, vejamos qual o seu papel no acto de conhecimento.
Uma coisa é a origem das categorias e outra a sua função ou uso. Kant diz que as categorias, formas a priori do entendimento, são as condições que tornam possível o conhecimento objectivo, a ligação ou síntese necessária dos fenómenos. A dedução (demonstração) transcendental das categorias (das categorias como condições de possibilidade a priori do conhecimento objectivo) é a parte mais importante da Analítica porque nos fala do momento decisivo na constituição da objectividade. Vejamos então o papel do entendimento e das suas formas (sobretudo o conceito de causa) no processo de conhecimento.
Foi dito que a sensibilidade é a faculdade que mediante as suas formas ou estruturas a priori nos permite receber dados ou impressões sensíveis e assim termos objectos para conhecer. Mas a sensibilidade só intui, não conhece, não constitui conhecimentos científicos. Assim, a sensibilidade é necessária para que possa haver conhecimento científico — sem ela, ou seja, sem a intuição sensível, nada nos seria dado para conhecer — mas não é suficiente (não produz conhecimentos científicos).
Por que razão é a sensibilidade indispensável e, contudo, insuficiente?
Para isto se tornar compreensível adiantemos a definição geral de conhecimento científico.
Conhecer cientificamente é estabelecer relações necessárias ou causais — de dependência — entre os dados ou objectos ao alcance do sujeito,de modo a tornar previsível e controlável o seu comportamento.

Consideremos duas impressões sensíveis — aumento de temperatura, A, e dilatação de um corpo, B. A sensibilidade recebe estas impressões e estabelece entre elas uma relação espácio-temporal: verifica que se deu um aumento de temperatura num determinado lugar e a determinada hora e que depois, no mesmo lugar, se verifica a dilatação de determinado corpo.
Como se vê, quando eu digo que A acontece antes de B num determinado lugar, limito-me a dizer que algo acontece de certa forma, mas não porque acontece assim.
Ora, o conhecimento científico, em sentido estrito, é explicativo. Explicar é indicar a causa de algo.
Conhecer cientificamente um fenómeno como a dilatação de um corpo não é simplesmente dizer que aconteceu depois do aumento da temperatura num determinado lugar. É dizer que o aumento da temperatura é a causa ou a explicação da dilatação de um corpo. A sensibilidade só estabelece entre estes dois dados sensíveis uma relação de sucessão temporal, "desconhecendo" que os dois estão necessariamente ligados, não "vendo" que um não acontece simplesmente antes e o outro depois, mas que um acontece como efeito de outro.
Isto só é possível quando o entendimento aplica o conceito de causa. Este conceito permite estabelecer relações de dependência entre dois fenómenos transformando um em causa e outro em efeito. Se, por exemplo, A é causa e B é efeito, isso quer dizer que B depende de A, que não pode acontecer sem ele e que sempre que se verifica A necessariamente irá suceder B. Conhecer cientificamente para Kant é então estabelecer, entre dois dados sensíveis que a sensibilidade situa no espaço e no tempo, uma relação de causalidade que torna um dependente de outro porque é causado por aquele..
A sensibilidade intui, recebe os dados sensíveis dando-lhes uma forma espacio temporal. O entendimento conhece aquilo que a sensibilidade põe ao seu dispor ligando necessariamente mediante o conceito de causa os dados sensíveis. Sem este conceito, forma intelectual do sujeito, não há conhecimento. Por isso se diz que o conhecimento a priori (universal e necessário) não deriva da experiência, dos objectos, mas sim do sujeito. [O conceito de causa é uma estrutura transcendental do entendimento sendo condição de possibilidade da ciência]

Kant e David Hume

Para David Hume, o conceito de causa não tem qualquer validade objectiva nem fundamento racional.
Que regularmente vejamos ou tenhamos visto B acontecer depois de A não nos permite estabelecer uma relação causal objectiva, ou seja, que B acontecerá necessariamente depois de A. A experiência — para Hume o único critério quanto ao conhecimento dos factos — permite-me captar uma sucessão regular entre dois fenómenos mas não uma sucessão necessária (ou seja, só permite ver o que acontece aqui e agora e não o que sempre acontecerá). Pela experiência sabemos que sempre no passado a água ferveu mas não é legítimo concluir que no futuro sempre ferverá. E contudo acreditamos — e é, útil que acredi-
temos — que o aquecimento da água é a causa necessárria da sua fervura. Porquê?
A explicação de Hume baseia-se em factores psicológicos. Transformamos uma sucessão temporal regular em relação causal ou necessária devido ao costume ou ao hábito: habituados a ver que B sucede regularmente a A acreditamos que A é a causa necessária de B, i. e., que sempre assim será.
O conceito de causa é o resultado de uma ilusão psicológica.
Na verdade, acontece é que por nos habituarmos a ver dois objectos sucederem-se um ao outro do mesmo modo, criamos a tendência para crer que aparecendo o primeiro, aparecerá também o segundo. Nada mais ilusório do que esta relação de dependência, porque transformou-se uma relação de mera sucessão temporal (o antes e o depois) em relação causal. Não há, segundo Hume, qualquer fundamento objectivo na experiência que confirme esta relação. Assim, o princípio de causalidade considerado um princípio racional e objectivo nada mais é do que uma crença subjectiva, o produto de um hábito, a transformação de uma expectativa em realidade.
Negando a origem a priori do conceito de causa e do princípio de causalidade, Hume rejeita um instrumento no qual a metafísica tradicional se baseava para as suas especulações. Kant reconhece, como será explicitado, que o conceito de causa não pode ter um uso metafísico ou transcendente mas assume o seu carácter a priori — estrutura objectiva do espírito humano. Assim, evita que a possibilidade do conhecimento científico seja atingida no seu ponto vital.

3.3.Os limites do conhecimento: não é possível o conhecimento científico de realidades metafísicas.

O conhecimento científico, embora não tenha o seu fundamento na experiência, começa com ela e por isso só pode ser conhecimento de realidades empíricas.
Conhecer é estabelecer relações de causalidade entre aquilo que se relaciona com o sujeito. Como é que as coisas se podem relacionar comigo? Se se manifestarem no espaço e no tempo, ou seja, se eu as puder espacializar e temporalizar mediante as formas da minha sensibilidade. Isto quer dizer que o conhecimento científico não é produzido pela sensibilidade, mas só pode ser acerca dos dados que esta recebe. Todo o conhecimento possível ao homem está limitado ao campo dos objectos que eu posso enquadrar no espaço e no tempo, aos dados da intuição empírica ou sensível.
Assim, os dados sensíveis são o que a sensibilidade coloca ao dispor do entendimento e do seu conceito por excelência: o conceito de causa. A relação causal que este estabelece, está limitada aos dados sensíveis ou fenómenos. O vínculo causa-efeito consistirá então em explicar um fenómeno mediante outro, fazendo de um a causa do outro, e nunca poderá consistir em explicar um fenómeno mediante algo que não seja fenómeno. O conceito de causa só pode, portanto, ter um uso imanente, limitado aos dados sensíveis, só pode funcionar no interior desses limites espácio-temporais. Por isso, nunca se poderá considerar científica uma afirmação do género: "Deus é causa disto ou daquilo". Só podemos atribuir a propriedade de causar isto ou aquilo (este ou aquele fenómeno) a algo que também seja fenómeno.
Conclusão: a metafísica enquanto pretensa ciência de realidades que transcendem o plano espácio-temporal, que não podem ser nele enquadradas pela nossa sensibilidade, não tem direito ao título da ciência.
Se eu pretendesse demonstrar a existência de Deus como causa do mundo (do conjunto dos fenómenos), estaria a usar o conceito de causa de uma forma ilegítima (uso transcendente e não imanente). O conceito de causa só serve para estabelecer relações entre as coisas que comigo se relacionam (os fenómenos), ou seja, para relacionar um fenómeno (uma realidade sensível) com outra realidade que só pode, por sua vez, ser fenómeno. Se fazemos de Deus causa do mundo e julgamos assim demonstrar a sua existência estamos a iludir-nos porque Deus, sendo concebido como eterno e incorpóreo, não é enquadrável no espaço e no tempo, não é fenómeno. Ora aquilo que consideramos ser causa e aquilo que consideramos ser efeito têm ambos de pertencer ao plano do espaço e do tempo, têm de ser fenómenos. Não pode, pois, haver um conhecimento científico de Deus, realidade metafísica, transcendente, supra-sensível.

1 — Todo o conhecimento começa com a experiência.
2 — O conhecimento científico não deriva da experiência (não tem o seu fundamento nela), mas sim de certas formas a priori do sujeito que conhece.
3 — O conhecimento científico, embora não tenha o seu fundamento na experiência, começa com ela e por isso só pode ser conhecimento de realidades empíricas ou sensíveis.

3.3.1. Uma distinção crucial: A distinção fenómeno-númeno
Só podemos conhecer mediante as categorias aquilo que nos é dado pela sensibilidade, ou seja, aquilo que podemos intuir. Só das realidades enquadráveis no espaço e no tempo podemos ter conhecimento científico.
Kant esclarece de imediato que reduzir o campo da actividade do conhecimento ao plano fenoménico — ao que podemos intuir — não pode significar uma redução da realidade ao que a sensibilidade capta e o entendimento conhece. Dizer que só conhecemos os fenómenos — os dados sensíveis — não impede que pensemos em realidades que não estão ao alcance da intuição sensível. Assim introduz Kant o conceito de númeno.
Kant afirma que o conceito de númeno pode entender-se em dois sentidos:

Se considerarmos uma coisa enquanto não é objecto da nossa intuição sensível, i. e., abstraindo do nosso modo próprio de intuir, então temos o númeno
em sentido negativo (aquilo que não é objecto da intuição sensível).

Se considerarmos uma coisa como objecto de uma intuição intelectual — a
qual não está em nosso poder temos o conceito de númeno em sentido positivo.

Assim, dado que a nossa intuição é simplesmente sensível — dado que só podemos intuir realidades sensíveis — aquilo a que chamamos númeno só pode por nós ser entendido em sentido negativo: o númeno é aquilo que não pode ser pensado como objecto da intuição sensível, é um "conceito-limite" (assinala os limites da sensibilidade e da função cognitiva das categorias do entendimento).
O númeno é o inverso do fenómeno: é algo que não é dado na intuição sensível.

Para quê falar então do númeno ou da coisa-em-si (Ding-an-sich)? Para impedir que se considerem os fenómenos como a totalidade do real. O facto indiscutível de só podermos conhecer os fenómenos não pode querer dizer que só existem os fenómenos. A investigação sobre o modo como podemos conhecer e sobre o que podemos conhecer disse-nos que só podíamos conhecer as realidades sensíveis e ao mesmo tempo proibiu-nos de transgredir os limites do nosso conhecimento interditando-nos qualquer afirmação ou negação peremptória sobre as realidades que não podemos conhecer. Não podemos afirmar nem negar a existência dos númenos ou coisas-em-si: Podemos contudo legitimamente pensar ou supor que existem realidades que transcendem o plano espácio-temporal, i. e., realidades que não são fenómenos.
O conhecimento científico tem limites. Está limitado ao plano dos fenómenos. Ora falar de limites é supor que se pode pensar que há algo para lá desses limites. O plano da realidade que ultrapassa o nosso poder de conhecimento e que podemos pensar tem o nome de númeno ou de mundo numénico. Assim não faz sentido reduzir a realidade (o que existe) ao que nos é possível conhecer (o mundo dos fenómenos). Seria arrogância do ser humano (finito e limitado como é) dizer: "Só existe aquilo que eu posso conhecer." A realidade não pode reduzir-se ao mundo dos fenómenos (ao plano dos objectos que, enquadrados no espaço e no tempo, são relacionados em termos de causa e efeito pelo entendimento). Para lá dessa dimensão é legítmo pensar que existe uma outra (o mundo dos númenos) porque só assim faz sentido falar de limites do conhecimento científico.
O fenómeno é a coisa tal como é para mim — é a coisa enquanto objecto do meu conhecimento e submetida às condições que tornam possível conhecê-la. Falar das coisas enquanto são para mim é já supor por contraste a existência das coisas tais como são em si mesmas. Podemos pensar a coisa em si como númeno, i. e., como objecto que não é dado na intuição sensível.
Em suma, não há, em termos teóricos, qualquer determinação positiva acerca dos númenos, não podemos conhecer as coisas enquanto númenos. O númeno é pensável: o conceito de uma coisa que não pode ser pensada como objecto da intuição sensível mas como coisa em si mesma não é contraditório porque embora a intuição sensível seja a única forma de intuição humana não podemos afirmar que ela é o único tipo de intuição possível.

   CONCLUSÕES ESSENCIAIS DA “ANALÍTICA TRANSCENDENTAL”


1.Os conceitos do entendimento denominados categorias não derivam da experiência, não são abstracções ou generalidades formadas a partir da experiência.

São conceitos a príori, i. e., puras formas do entendimento. O fio condutor para a descoberta destes conceitos puros ou categorias é a análise do acto fundamental do entendimento: o juízo. Como o acto de julgar pressupõe o uso de conceitos, i. e., formulamos juízos mediante essas estruturas do entendimento, descobriremos quais e quantas são as categorias a partir da análise dos diversos tipos de juízos. Kant não se refere a juízos concretos ou particulares, cujo número é indefinido, mas a tipos de juízos de acordo com a sua forma lógica. Cada tipo de juízo está determinado por um conceito a priori ou categoria de tal modo que de cada tipo lógico de juízo é possível deduzir sem recurso à experiência a categoria correspondente e determinante. Como os tipos lógicos de juízos são doze — de acordo com a lógica formal do seu tempo — Kant conclui que as categorias fundamentais do entendimento são também doze. O que essencialmente devemos reter desta dedução "metafísica" das categorias é que elas têm uma origem a priori, são estruturas universais e necessárias sem as quais o entendimento não formularia juízos. As categorias são formas para o exercício da nossa faculdade de julgar. Mais do que simples representações mentais (poderíamos confundi-las com ideias inatas) são os actos fundamentais da nossa mente ou intelecto.
2    — Se as categorias não derivam da experiênca dos objectos, têm, contudo, uma importante relação com os objectos da experiência (os dados empíricos).
Com efeito, sem elas não é possível conhecimento algum. Sem a aplicação das categorias aos dados da intuição sensível não temos mais do que  sensações dsligadas e dispersas. As categorias são estruturas transcendentes porque são a condição de possibilidade a priori do conhecimento científico dos dados empíricos. Se o espaço e o tempo eram estruturas transcendentais por serem a condição a priori que tornava possível a intuição sensível, as categorias do entendimento são-no por tornarem possível o conhecimento científico dos dados intuídos.

3·- O conhecimento científico implica a relação entre entendimento e sensibilidade.
A sensibilidade é uma faculdade receptiva (intui) e dá-nos objectos — os fenómenos que constituem, por assim dizer, a matéria ou o conteúdo do conhecimento. O entendimento é uma faculdade essencialmente activa "espontânea", mas não é dotada do poder de intuir (não há intuição intelectual mas simplesmente sensível). A sensibilidade dá ao entendimento a matéria ou o conteúdo do conhecimento (os dados intuídos, i. e., espacializados e temporaliza-dos, mas desligados). O entendimento constitui o conhecimento científico — a ligação necessária, a síntese ou unificação dos fenómenos que estavam dispersos — mediante as categorias. É ele que nos dá a forma do conhecimento. As leis que regem o comportamento dos fenómenos — a ordem e a legalidade natural — derivam do entendimento do sujeito cognoscente. Por isso, embora o conhecimento científico comece com a experiência — a intuição ou recepção dos dados sensíveis — ele não deriva dela.

4 -  O conhecimento científico começa com a experiência (só ela nos dá objectos)e embora não derive dela (o seu fundamento está nas estruturas não empíricas do entendimento) só pode ser conhecimento das realidades sensíveis ou feno-ménicas (daquilo que nos é dado para conhecer).
Conhecer cientificamente é essencialmente estabelecer relações causais ou necessárias (um vínculo de dependência) entre os objectos ou dados que estão ao alcance do sujeito.
Os objectos ou dados que estão ao nosso alcance são os que podemos intuir. Porquê? Porque só a intuição "nos dá objectos" como diz Kant. Ora como a intuição só é, no nosso caso, possível mediante duas formas a priori da sensibilidade os objectos que estão ao nosso alcance são os dados ou impressões sensíveis. Só podemos conhecer cientificamente o que podemos intuir. Como a nossa intuição é sensível ou empírica só haverá conhecimento científico de dados sensíveis, de dados espácio-temporalmente enquadrados (os fenómenos). As coisas em si são as "coisas" que não podemos espacializar nem temporali-zar. É impossível conhecer o que não é objecto da nossa intuição. O conhecimento científico limita-se à explicação do que acontece ou se dá no plano espácio-temporal.
Isto não quer dizer que o conhecimento científico seja empírico. Para que isso acontecesse teria de derivar da experiência, da intuição empírica. Ora isso não acontece. A relação causal ou científica significa que usamos um conceito (o de causa) para ligar os dados que a sensibilidade deixara desligados no espaço e no tempo. Esse conceito ou estrutura é transcendental (torna possível a priori o conhecimento científico). Não tem a sua origem na experiência mas no entendimento: tem uma origem intelectual, é um produto do nosso intelecto ou entendimento.
Se o conceito de causa não é empírico (não deriva da intuição dos dados empíricos) e se sem ele não podemos estabelecer relações causais ou científicas entre os fenómenos então o conhecimento científico embora limitado aos dados empíricos não é de natureza empírica. Só conhecemos objectos empíricos mas não os conhecemos de modo empírico.
Por isso é legítimo falar de juízos sintéticos a priori ou científicos. Exemplo de um juízo sintético a priori: Sempre que aumenta a temperatura produz-se a dilatação de um corpo.Traduzindo: a causa da dilatação de um corpo é sempre um determinado aumento de temperatura. Há aqui uma ligação ou síntese causal entre A e B. Como o conceito que permite essa ligação ou síntese não deriva da experiência, este juízo exprime uma síntese a priori, não empírica: é um juízo sintético a priori.
Consideremos o seguinte juízo: "A luz do Sol aquece a pedra." Este juízo não constituiria um conhecimento objectivo (necessário, universal) se eu simplesmente associasse duas representações ou fenómenos (a aparição do sol e o aquecimento da pedra). Estaríamos perante um juízo a que Kant, nos Prolegómenos, chama juízo perceptivo, de percepção. Seria então correcto dizer não "o sol aquece a pedra" mas antes "o Sol atinge a pedra com os seus raios, ela aquece". Estou a associar dois estados ou representações subjectivas mas não estou a unificá-los, a determiná-los, a ligá-los necessariamente. Para isso é necessário o entendimento e a categoria da causalidade. No juízo de percepção a associação das duas representações não faz com que estas transcendam o seu carácter subjectivo, acidental, contingente. Ligadas pelo conceito de causa (necessário e universal), essas representações são ligadas "no objecto", ou seja, é-nos permitido constituir um enunciado (uma lei científica) segundo o qual todas as vezes que o sol incide na pedra, durante um certo tempo, esta é necessariamente aquecida. Os dois fenómenos deixam de estar um para o outro numa mera relação de sucessão temporal. Estão ligados segundo uma relação causal. Estão necessariamente ligados pois não há causa sem efeito e vice-versa e esta ligação feita pelo sujeito impõe-se ao sujeito, torna-se objectiva.

5 - O conceito de causa, tão utilizado pela tradição racionalista na solução de problemas metafísicos e na explicação metafísica de fenómenos ou acontecimentos, não pode ter um uso transcendente mas tão só imanente (ligando necessariamente os objectos que estão no interior do plano espácio-temporal e só esses).
O conceito de causa é um conceito unificador e sintético, ou seja, liga certos dados estabelecendo uma relação causa-efeito entre eles. Esse conjunto de dados que ele permite ligar (essa diversidade ou multiplicidade) não é recebido (intuído) pelo entendimento. Este, por si só, só tem o poder de formar conceitos mas não o de intuir. Quem recebe esses dados? A sensibilidade porque está equipada com estruturas receptivas adequadas: o espaço e o tempo, as formas que nos permitem entrar em contacto com as coisas. Assim, os dados sensíveis são a diversidade ou multiplicidade que a sensibilidade coloca ao dispor do entendimento e do seu conceito por excelência: o conceito de causa. Deste modo, a aplicação do conceito de causa, a relação causal que este estabelece, está limitada aos dados sensíveis ou fenómenos. O vínculo causa-efeito consistirá então em explicar um fenómeno mediante outro, fazendo de um a causa do outro e nunca poderá consistir em explicar um fenómeno mediante algo que não seja fenómeno. O conceito de causa só pode, portanto, ter um uso imanente, limitado aos dados sensíveis, só pode funcionar no interior desses limites espácio-temporais. Por isso, nunca se poderá considerar científica uma afirmação do género: "Deus é causa disto ou daquilo." Só podemos atribuir a propriedade de causar isto ou aquilo (este ou aquele fenómeno) a algo que também seja fenómeno. Deus é uma realidade metafísica, não-fenoménica. Relacionar em termos causais — usando o conceito de causa-realidades sensíveis e uma realidade metafísica como Deus é um abuso, algo ilegítimo, mera especulação que só conduz a ilusões. De Deus não há intuição alguma. Como o conceito de causa só estabelece relações entre dados intuitivos, falar de Deus como causa seja do que for não faz sentido, é falar sem saber o que se diz.
6 -  Podemos pensar que a realidade não se reduz ao plano dos fenómenos: a distinção fenómeno-númeno corresponde à distinção entre o cognoscível e o pensável.
 O fenómeno é aquilo que está ao alcance da nossa intuição (a intuição empírica ou sensível). Por isso pode ser objecto de conhecimento porque o entendimento conhece (estabelece relações causais) os dados sensíveis ou empíricos.
 O númeno é aquilo que não podemos enquadrar no espaço e no tempo e que, portanto, não pode ser objecto de uma intuição sensível, a única que nos é possível; por isso mesmo e uma vez que todo o conhecimento começa com a experiência (a intuição sensível) o plano dos númenos(1) é inacessível ao nosso conhecimento.
 Como o homem só impõe limites ao seu conhecimento e não à realidade podemos pensar que existem realidades que não podemos conhecer: essas realidades que transcendem o nosso conhecimento são os númenos. O plano dos númenos não é impensável mas simplesmente incognoscível. Distinguir, estabelecer a diferença entre númeno e o fenómeno, é distinguir o que pode ser pensado como existente daquilo que existe como podendo ser conhecido.
 (" O plano dos númenos é o das realidades metafísicas em geral: Deus, por exemplo, é uma realidade numénica, não-fenoménica.
8 - A gnosiologia kantiana é um idealismo (racionalismo) transcendental.
Por idealismo transcendental entende-se uma doutrina que afirma que o sujeito constrói o objecto de conhecimento mediante as suas estruturas transcendentais. Tal significa que só podemos conhecer fenómenos, isto é, as coisas adequadas à nossa forma de conhecer. Sendo as coisas em si mesmas incognoscí-veis, nós nunca saberemos se a nossa representação das coisas corresponde ao que elas são em si. Vê-se que o idealismo transcendental não nega a existência das coisas em si mesmas, não transforma o mundo no conjunto das representações do sujeito. É, portanto, um idealismo gnosiológico e não ontológico. Com efeito, a própria existência da coisa em si é uma afirmação necessária porque é ela a causa ou a origem do dado, isto é, da matéria do fenómeno, desencadeando assim os mecanismos das formas do conhecimento. Acreditar que as coisas existem realmente e que elas são em certa medida condição do processo de conhecimento, é uma afirmação própria de um realismo empírico. Se o objecto do conhecimento é uma representação para nós, a realidade não se reduz aos fenómenos e por isso o idealismo transcendental ao não negar a existência de coisas fora do sujeito é um realismo empírico.


3.4.A "dialéctica transcendental": a crítica das pretensões da razão pura teórica

Estabelecido o modo como conhecemos e o que podemos conhecer estamos em condições de perceber o que, em geral, Kant entende por "crítica da razão pura". Devemos começar por esclarecer que a expressão "razão pura" mais do que uma faculdade designa uma atitude dessa faculdade a que chamamos razão e um modo de conceber o seu funcionamento. Chama--se pura à razão desligada da sensibilidade e, por conseguinte, sem qualquer ligação com a experiência ou a intuição empírica. A tradição racionalista, inspirada sobretudo em Descartes e tendo Wolff como expoente máximo no tempo de Kant, acreditava na possibilidade de um conhecimento puramente racional, que fosse obra exclusiva da razão. Partidário, tal como é próprio do Iluminismo, da ideia de autonomia da razão, Kant não vai, contudo, admitir que a "pureza" da razão no plano do conhecimento seja defensável, i, e., rejeitará a possibilidade de constituir conhecimento sem o contributo da sensibilidade.
Assim, a exposição anterior sobre o modo como sensibilidade e entendimento não podiam isoladamente produzir conhecimentos lançou as bases ou os fundamentos da crítica da razão pura, i. e., da crítica de uma atitude da razão que julga que à margem da sensibilidade — desprezando o contributo desta — pode conhecer. Esclarecido o âmbito legítimo de aplicação do conhecimento, como ele começa, de onde deriva, podemos criticar a razão que pretende, no que respeita ao conhecimento, ser pura. Por isso se compreende que, explicitamente, na obra Crítica da Razão Pura, a razão pura seja criticada só depois de na "Estética e Analítica transcendentais" termos definido as condições e os limites do conhecimento.
A crítica das pretensões da razão pura no plano teórico, i. e., no plano do conhecimento, — feita com objectivo de "chamar a razão à razão", convidá-la à humildade — assenta em dois princípios essenciais:
A — Nenhuma faculdade pode conhecer seja o quer for sozinha, por si só. O entendimento, a faculdade que propriamente falando conhece cientificamente (porque só ele pode estabelecer relações necessárias entre os dados sensíveis, os fenómenos) precisa do contributo da sensibilidade: só esta mediante as suas formas a priori recebe as impressões ou dados sensíveis às quais o entendimento, que não tem o poder de intuir, aplicará os seus conceitos, ligando os dados sensíveis
B — O conhecimento científico começa com a recepção das impressões sensíveis, ;'. e., com a experiência e embora não derive dela mas sim das formas a priori do sujeito, só pode ter como objecto os dados sensíveis: o conhecimento científico de realidades metafísicas é impossível.

3.4.1 A razão pura nada pode conhecer: não é possível um conhecimento puramente racional
O adjectivo "pura" com o qual se qualifica a razão indica que esta não tem qualquer ligação com a sensibilidade e, por conseguinte, com a experiência (intuição emprírica).
Poderá ela, nestas condições, constituir conhecimentos acerca do mundo fenoménico ou sensível?
É óbvio que não. Com efeito, todo o conhecimento começa com a intuição empírica. Desprezando o contributo da sensibilidade — a única faculdade que nos dá objectos — a razão nada tem para conhecer. A doutrina kantiana sobre o conhecimento, ao estabelecer que só podemos conhecer o que podemos intuir, negou a possibilidade de um conhecimento puramente racional (de um conhecimento que a razão constituiria sem qualquer recurso à sensibilidade).
E quanto às realidades metafísicas terá a razão pura melhor destino?
Apesar de as questões metafísicas serem aquelas que fundamentalmente interessam à razão, a análise efectuada anteriormente sobre o modo como conhecemos e sobre o que podemos conhecer impõe uma resposta negativa.
Como só podemos conhecer aquilo que podemos intuir (e só temos intuição de realidades empíricas) a razão pura não pode conhecer realidades metafísicas.
A razão tem o destino de não poder fugir às questões metafísicas e ao mesmo tempo de não lhes poder responder.

Na "Dialéctica transcendental" Kant fala de novas formas a priori, de novas estruturas transcendentais do sujeito. Tais formas são denominadas ideias. Será que mediante estas formas poderemos realizar o conhecimento absoluto? Não. Quanto a esse aspecto as conclusões da Analítica são definitivas: a sensibilidade intui, o entendimento conhece. A razão pensa mas não conhece.
Mas será que a limitação do nosso conhecimento (só conhecemos o que podemos intuir) nos satisfaz? Não, e a razão, faculdade entendida em sentido estrito, é a voz dessa insatisfação.
O que o entendimento consegue no plano do conhecimento não satisfaz a razão. Esta deseja explicações definitivas, absolutas. Ora, o entendimento, ao explicar os fenómenos, encontra como causa de um fenómeno sempre outro fenómeno, nunca atingido, já que não ultrapassa o plano dos objectos espacio-temporalmente enquadrados, a causa última ou incondicionada de todos os fenómenos.
A razão, dada a sua vontade de conhecimento absoluto, exige que não fiquemos pelo que é condicionado e encontremos o que é incondicionado. Isso não quer dizer que este incondicionado — esta é causa última de tudo — exista ou se possa alcançar.
Não podendo conhecer realidades metafísicas como forma ela a ideia de tais realidades absolutas ou incondicionadas?
A razão, dada a sua tendência metafísica, unicamente supõe ou admite que a série das condições ou causas está dependente de uma causa que de nada depende. Ao formar a ideia de uma causa incondicionada de todos os fenómenos, a razão pura está a formar a ideia de Deus. A ideia de Deus não deriva da experiência pois é o resultado da insatisfação da razão com explicações que como causa dos fenómenos encontram sempre uma realidade fenoménica, i. e., condicionada. A ideia de Deus, forma a priori da razão pura, surge como resultado da vontade de absoluto que anima a razão humana, exprimindo a sua vocação essencialmente metafísica. Traduz o desejo de absoluto mas nada mais. Com efeito, para haver conhecimento de Deus este teria de ser objecto da nossa intuição (só conhecemos o que intuímos). Podemos pensar Deus — podemos pensar em uma causa última de tudo — mas não o podemos conhecer. O que vale para a ideia de Deus, vale para as outras duas ideias da razão pura: as ideias de Alma e de Mundo. Dado não podermos ter qualquer intuição das realidades que essas ideias representam podemos somente pensá-las. Em termos kantianos, as ideias da razão não têm um uso constitutivo, não permitem constituir conhecimentos.

3.4.2. Não podendo ter um uso constitutivo a razão pura vai ter um uso legítimo: o uso regulador
Não podendo constituir conhecimento — não tendo um uso constitutivo pois este está reservado ao entendimento dentro de limites empíricos — será a razão uma faculdade absolutamente desligada do processo de conhecimento? Não terá ela nenhum uso? Será supérflua?
A resposta de Kant é a de que, embora não produzindo conhecimentos, a razão vai ser útil à actividade científica do entendimento (a "faculdade dos conhecimentos"). Para isso bastará analisar o papel que a ideia de Deus desempenha. Mas antes de tornar explícito esse papel, definamos em termos gerais a utilidade da razão. Essa utilidade vai consistir em regular a actividade cognitiva do entendimento. Regular vem do latim "regula" que significa "regra". Dizer que a razão tem um uso regulador quer dizer que ela vai estabelecer uma regra que oriente a actividade epistémica ou científica do entendimento.
O que diz essa regra? Como contribui ela para o processo de conhecimento?
Essa regra geral diz o seguinte: "Conhece como se fosse possível atingir o conhecimento absoluto."
A razão convida o entendimento a estabelecer relações causais entre os fenómenos como se fosse possível prolongar a série das causas condicionadas até encontrar a causa última de todos os fenómenos.
Para encontrar a causa de todas as coisas, i. e., da totalidade dos fenómenos, teríamos de ultrapassar o plano das realidades sensíveis ou espácio-temporais. Já sabemos que isso é impossível: o conhecimento científico é limitado. A omnisciência (o conhecimento total) está fora do nosso alcance. Pensamos que pertence a Deus, caso este exista. Logo agir como se fosse possível o conhecimento absoluto é, para o entendimento, agir orientado pela ideia de Deus: é agir como se fosse possível sermos tal como pensamos que Deus é (omnisciente).
O conhecimento absoluto simbolizado por Deus'" é um ideal irrealizável. Contudo, querer realizá-lo tem consequências positivas. Com efeito, o entendimento ao procurá-lo vai considerar sempre provisórios os seus conhecimentos, não se satisfará nunca com as explicações alcançadas. E de explicação em explicação vai progredindo no conhecimento do mundo dos fenómenos, como se um dia fosse possível explicá-lo definitiva e totalmente.
A vantagem da regra da razão, a vantagem deste ideal inalcançável, é a de que impede que o entendimento se satisfaça com as explicações já alcançadas e tente, no seio do espaço e do tempo, no plano dos fenómenos, encontrar causas cada vez mais amplas, i. e., que expliquem um número cada vez maior de fenómenos. Querer o absoluto é a forma de fazer avançar o conhecimento relativo. Querer o impossível é a forma de fazer avançar o conhecimento possível.
Na procura sempre frustrada da unidade total, o entendimento não se fixa no adquirido, nas objectivações já efectuadas, e procura para cada dado condições cada vez mais englo-bantes. Por outras palavras, embora impossibilitado de legitimamente transcender os limites da experiência, o entendimento não tem, dentro desses limites, qualquer fronteira. Não há fronteiras para o conhecimento científico (a experiência é sempre fonte de novidade, de novas coisas para compreender, e isso prova-o a história da ciência) embora este se constitua dentro de limites — espácio-temporais — que não é legítimo transpor.

(1) Deus é uma realidade metafísica cuja existência não podemos demonstrar. A ideia de Deus (tal como as outras ideias) é uma forma ou estrutura de uma faculdade do sujeito: a razão. É portanto uma estrutura ou forma do sujeito e não algo que transcende este. Deus é transcendente; a ideia de Deus é uma estrutura transcendental do sujeito.
Se é transcendental, a ideia de Deus é condição de possibilidade a priori de algo. De quê? Não do conhecimento mas sim do progresso do conhecimento. A ideia de Deus é um ideal porque representa um ser que supomos omnisciente, que não só supomos criador de tudo mas também conhecedor de tudo. Agir como se fosse possível conhecer tudo absoluta e definitivamente, ter a chave que explica o mistério de todas as coisas, é agir segundo a ideia de Deus. É essa a regra que a razão dá ao entendimento para que este nunca perca a sua dinâmica cognitiva. Assim, a razão é condição de possibilidade do progresso do conhecimento científico.

3.4.3. A "ilusão transcendental" ou os perigos do uso regulador da razão
A razão é desejo de conhecimento absoluto. Sabemos já que a faculdade que conhece é o entendimento e que a razão orienta ou regula a actividade cognitiva do entendimento. De que forma? Como é que as ideias regulam a tarefa do entendimento?
Em termos imagéticos, podemos dizer que o entendimento fala e só compreende a linguagem dos objectos. Para cumprir a função de dinamizar a actividade do entendimento a razão apresenta as ideias sob a forma de objectos. Se a razão na sua lucidez crítica sabe que tal objecto é um simples objecto em ideia e não real, o entendimento, no seu pendor objec-tivante, ilude-se e julga que a razão lhe apresenta um objecto real. Ilusão, pois só é possível a objectividade imanente, sempre incompleta.
Esta ilusão não é uma ilusão de óptica, mas, tal como esta, o facto de ser denunciada não impede que seja inevitável. Uma vara que mergulhamos na água, mesmo que saibamos que não é assim, parecer-nos-á sempre quebrada. A que se deve o carácter inevitável da ilusão transcendental? Primeiramente deve dizer-se que a ilusão transcendental consiste em julgar que através dos conceitos de entendimento podemos conhecer realidades que não são dadas na intuição sensível. Por paradoxal que pareça, a ilusão tem a sua raiz na actividade reguladora da razão.
O entendimento ilude-se porque uma vez que a ideia é, por natureza, aquilo a que nenhum objecto empírico corresponde ou se adequa, ele toma o objecto em ideia por objecto real supra-sensível. Só uma reflexão profunda sobre as fontes do conhecimento e os seus limites pode denunciar esta ilusão e evitar que o seu carácter inevitável se torne prejudicial. É inevitável que a ideia se apresente como objecto, mas é denunciável confundi-la com o objecto real, porque para a ideia ser realmente objecto teria de ser dada numa intuição que correspondesse àquilo que ela representa. Ora a intuição está limitada aos objectos espácio-temporais: não é possível intuir as realidades que as ideias representam.


3.4.4. A dialéctica da razão pura teórica: o mau uso ou o dogmatismo da razão

Útil na sua função reguladora da actividade científica do entendimento, a razão cede, contudo, muitas vezes, à tentação de se pronunciar em termos científicos sobre os grandes problemas da metafísica. Confunde a sua necessidade subjectiva (o conhecimento de realidades metafísicas) com a realidade objectiva. Por outras palavras, ilude-se: transforma a necessidade de conhecer, por exemplo Deus, em afirmação da realidade objectiva de Deus. É analogamente o mesmo que transformar o desejo de comer em comida. Esquece que uma coisa é pensar e outra é conhecer, ou seja, especula. Quando pretende ter mais do que um uso regulador a razão pura teórica torna-se razão puramente especulativa ou dialéctica.
Veremos em que consiste este mau uso da razão a propósito de um problema metafísico essencial: o da liberdade.
A razão pura julga que com base na sua simples capacidade argumentativa pode resolver as questões metafísicas que a assediam. «Suspensa no ar», perdendo de vista a análise das condições e dos limites do conhecimento, sem qualquer referência à experiência, a razão empreende com convicção a solução do problema da liberdade («Há liberdade ou não há liberdade?»).
Contudo, vai acabar por chegar a um impasse, a uma contradição consigo própria, vai envolver-se numa «teia de aranha mental». Essa teia tem o nome de antinomia, contradição profunda da razão consigo mesma.

Vimos que o bom uso da razão consiste na regulação da actividade da única faculdade que pode constituir conhecimento: o entendimento. Contudo, muitas vezes, a razão pura não se conforma com esta útil, mas a seu ver, demasiado humilde função. Dada a sua irresistível ou inelutável vocação metafísica, a razão pura sente que não pode abdicar da tentativa de responder às questões metafísicas. Estas são, por definição, as questões naturais ou fundamentais da razão. Apesar das conclusões a que chegou a análise sobre o modo como conhecemos e sobre o que podemos conhecer, a razão não se resigna a esse destino. Pensa que as questões metafísicas (liberdade, imortalidade, Deus) aguardam uma resposta, uma demonstração racional,;'. e., da razão.
Esta tendência irreprimível da razão está na origem daquilo a que, escolhendo a questão da liberdade, iremos assistir: a dialéctica da razão pura, ou seja, o conflito ou a contradição da razão consigo própria. Uma razão que se contradiz a si própria torna-se "irracional", torna-se des-razão.
Escolhendo, como exemplo, o problema metafísico da liberdade, vejamos, como confiando cegamente na sua capacidade de argumentação e de demonstração, a razão vai manipular conceitos e princípios enredando-se a si mesma.

A antinomia da liberdade
Problema a resolver — "Há ou não há liberdade?"
Definição do conceito de liberdade — Liberdade é a capacidade de produzir efeitos
sem ser efeito de nada. Assim, definindo liberdade nestes termos, ela será sinónimo
de causa não condicionada por nenhuma outra, de causa primeira.
Princípio que orienta a argumentação:— "Tudo tem uma causa."
A desorientação da razão — Para se poder falar de contradição da razão consigo
mesma tem de lhe acontecer o seguinte: retirar ou deduzir do princípio anteriormente
referido conclusões que se neguem uma à outra.
Como vai acontecer isso?
O princípio "tudo tem uma causa" pode ser interpretado como querendo dizer que todas as coisas têm uma causa. Se assim é, a causa de todas as coisas não pode ser efeito de nada porque se fosse causada por algo já não seria causa de todas as coisas (haveria algo de que ela não seria causa). Temos assim de admitir que para haver uma causa de tudo (de todas as coisas) tem de haver uma causa livre, não condicionada por nenhuma outra, ou seja, uma causa que produz efeitos sem ser efeito de nenhuma outra.
Há liberdade ou causalidade livre.
Contudo, o mesmo princípio — "Tudo tem uma causa" — pode também ser interpretado como querendo dizer que não há nenhuma coisa que não tenha uma causa. Cada coisa é ao mesmo tempo causa de certos efeitos e efeito de certas causas. Assim falando das coisas em particular e não das coisas em geral — como era o caso da primeira interpretação — devemos concluir que não há nenhuma causa incondicionada, não há nenhuma causa que produza efeitos sem por sua vez ser efeito de outra causa. Não há liberdade ou causalidade livre.

PRINCÍPIO: TUDO TEM UMA CAUSA

Se tudo tem uma causa devíamos encontrar a causa de tudo. Ora isso só é possível se houver uma causa absolutamente primeira que de nada seja efeito. Na verdade, se a causa de tudo fosse efeito de outra causa haveria algo que ela não causa e então não seria causa de tudo. Tem de haver portanto uma causa absolutamente espontânea, não condicionada por nenhuma causa, isto é, livre. Há causalidade livre, há liberdade. Eis a demonstração da tese.
Se tudo tem uma causa então não podemos afirmar a existência de uma causa que ao mesmo tempo não seja efeito de outra, i.e., causada por outros. Se dizemos que há uma causa que não é efeito de nada estamos a dizer que essa causa não tem por sua vez uma causa. Mas o princípio ao qual devemos obedecer diz que tudo tem uma causa. Por conseguinte, não pode haver causalidade livre, uma causalidade independente de qualquer outra causa. Não há liberdade. Eis a demonstração da antítese.
A razão torna-se antinómica ou contraditória quando querendo resolver questões que ultrapassam as suas capacidades (e as de qualquer faculdade humana) se deixa enredar nas suas próprias habilidades especulativas, ficando desorientada, completamente à deriva. Com efeito, as duas conclusões contraditórias a que chegou, ao argumentar desconhecendo os seus limites, parecem ambas válidas. Melhor dizendo, nenhuma dedução é  logicamente mais correcta do que a outra. Mas, escândalo dos escândalos, anulam-se uma à outra. A razão fica sem saber o que fazer. A sua capacidade argumentativa ou especulativa, na qual tanta confiança depositava, acabou por a conduzir a um beco do qual não a pode tirar. A aventura da razão pura teórica no domínio metafísico nunca chega a bom termo. É uma navegação num oceano tempestuoso, sem qualquer possibilidade de encontrar terra firme. Esta desconcertante e humilhante "experiência" da razão deve constituir-se como uma lição contra qualquer extravagância ou ambição desmedida: a razão deve, autocriticando-se, aceitar que jogar com conceitos ou princípios (o conceito de causa e o princípio de causalidade) que só valem para os objectos empíricos, tentando com eles resolver problemas metafísicos, é atitude especulativa de consequências nefastas. Para não se tornar irracional a razão deve convencer-se de que só temos conhecimento daquilo que podemos intuir. A própria extravagância especulativa que a cobriu de ridículo deve convencê-la. Com efeito convenhamos que responder à questão "Há ou não há liberdade?" dizendo, mediante engenhosos mas vazios argumentos, "há" e "não há" é, no mínimo, fraco resultado para tanto esforço e arrogância.
A razão deve acordar do seu "sono dogmático", da cega autoconfiança em si própria.


 CONCLUSÕES ESSENCIAIS DA "DIALÉCTICA TRANSCENDENTAL"

1    — O desejo de conhecimento absoluto da razão é uma necessidade constitutiva desta. Nesse sentido, diz Kant, a metafísica subsistirá sempre. No 4 dos Prolegómenos, Kant compara a metafísica à espuma que se forma no cimo da onda e que se refaz constantemente mesmo quando a queremos anular.
2    — As ideias da razão são a expressão intelectual desta vontade de absoluto, de totalidade, de satisfação integral do desejo de conhecer. As ideias apontam tarefas que nunca estarão acabadas. São representação de ideais irrealizáveis que contudo atraem o homem e dinamizam a sua actividade cognitiva.
3    — As ideias são, portanto, condições de possibilidade do progresso do conhecimento científico embora não produzam qualquer conhecimento. Estimulam o entendimento, faculdade da qual depende a possibilidade do conhecimento científico, a ir sempre em frente ao longo da cadeia das causas. Dão uma direcção ao conhecimento. As ideias estimulam e dinamizam indefinidamente a actividade cognitiva do entendimento. É nesta aproximação indefinida a algo que nunca será realizado (a unificação absoluta) que consiste o progresso do conhecimento. As ideias da razão são possibilidades que nunca se realizando mantêm o conhecimento sempre em aberto. Quando a razão orienta a actividade do entendimento mediante as ideias está a estabelecer como regra dessa actividade a seguinte máxima: age como se fosse possível a unificação total e definitiva, o conhecimento absoluto.
4    — Contudo, este impulso que a razão desperta no entendimento é gerador de uma irresistível ilusão: o entendimento confunde o progresso (o ir sempre em frente) com a ultrapassagem dos limites da experiência.
Esta ilusão é irresistível, mas corrigível. A razão pode denunciar a ilusão e precaver-se, embora não possa destruir o impulso que a produz.
5    — A razão é a faculdade suprema de unificação do conhecimento. Contudo, não unifica nenhum objecto ou conteúdo próprio. Ela é a "faculdade dos princípios", não dos conhecimentos (isso é próprio do entendimento). A sua função é reduzir a enorme variedade dos conhecimentos do entendimento ao menor número de princípios ou de condições universais. Por outras palavras, a razão unifica os conhecimentos do entendimento referindo-os a algo incondicionado, absolutamente primeiro, que é incognoscível.
6    — As ideias são a representação desse "algo" incondicionado. Tal como deduziu as categorias do entendimento da análise da tábua lógica dos juízos Kant fez derivar as ideias da razão da análise de três classes de raciocínios mostrando que há três ideias e que a sua origem é puramente a priori.
Mediante as ideias dá-se unidade aos conhecimentos que o entendimento forma acerca dos fenómenos. A ideia de Alma permite unificar todos os conhecimentos do entendimento sobre os dados da experiência interna; a ideia de Mundo unifica todos os conhecimentos sobre os dados da experiência externa; a ideia de Deus unifica os conhecimentos sobre a totalidade dos fenómenos. A razão é, assim, a faculdade suprema de unificação mediante ideias. Mas só pode pensar o que unifica como se fosse um objecto real. Como não tem o poder de intuir as totalidades que mediante as suas ideias representa nada conhece. As ideias serão sempre estruturas sem qualquer conteúdo.
7- A razão deve saber "orientar-se no pensamento" não embarcando em aventuras especulativas, não cedendo à tentação de resolver demonstrativamente as questões metafísicas, porque ficará completamente bloqueada por teses contraditórias, aparentemente passíveis de demonstração. Para não cair no impasse irracional das antinomias a razão não pode transformar a busca do incondicionado em realidade objectiva.
É legítimo procurar o incondicionado, exigir remontar cada vez mais alto, de causa em causa: conheceremos mais fenómenos e sistematizaremos cada vez mais esses conhecimentos mas a tensão racional em direcção ao princípio absoluto não pode ter mais do que uma finalidade, reguladora da investigação científica (o incondicionado não é cognoscível).
A paixão metafísica da razão não é inútil — tem um uso regulador — mas não pode ser correspondida: as realidades metafísicas não estão ao alcance da razão humana.
A procura do incondicionado, do absoluto, em suma, do que é metafísico, não culminará nunca na transformação da metafísica numa ciência.


SÍNTESE DA DOUTRINA KANTIANA SOBRE O CONHECIMENTO

Contexto filosófico: racionalismo e empirismo

A teoria kantiana do conhecimento consiste numa ultrapassagem ou superação quer do empirismo, quer do racionalismo. Para Kant, o empirismo — que o filósofo alemão critica referindo-se essencialmente a David Hume — conduz ao cepticismo, à descrença na possibilidade do conhecimento científico ou objectivo. Pensar que o conhecimento se baseia exclusivamente — deriva — no que é dado pela experiência ou intuição sensível e não contém nada mais é ter uma concepção errada do conhecimento. Na verdade, dizer que o conhecimento deriva da experiência impede-nos de dar conta, ou, melhor dizendo, de fundamentar uma lei como a da queda dos corpos. Esta lei científica que, em geral, diz, "sempre que um corpo se encontra em queda livre, acelera 9 metros por segundo", não deriva da experiência. Esta é sempre particular; só nos diz o que acontece num dado momento e num certo lugar mas não o que acontece sempre. Ao apontar as insuficiências do empirismo, Kant não está a desvalorizar a experiência. Não se comporta como um racionalista tradicional (metafísico). Para Kant, embora não derive da experiência ou intuição sensível, o conhecimento começa com a experiência.
Embora baseado num modelo do conhecimento distinto do empirista, o racionalismo tradicional revela-se, também segundo Kant, insuficiente para fundamentar (mostrar como é possível) o conhecimento científico. Para os racionalistas como Descartes, a razão é a única fonte de conhecimento verdadeiro. A razão pura, isto é, a razão desligada da sensibilidade (da intuição empírica) é, para o racionalismo tradicional, a faculdade que, possuindo ideias inatas de toda a realidade, declara ser possível, através da pura e simples análise dessas ideias, conhecer a realidade no seu todo. Esta confiança excessiva nas capacidades da razão, a crença de que ela por si só, isto é, enquanto pura, pode conhecer, desprezando assim o contributo da sensibilidade, é criticada por Kant. O filósofo alemão irá instaurar uma Crítica da Razão Pura. Se todo o conhecimento começa com a experiência ou intuição empírica (acto da sensibilidade) então não é possível um conhecimento puramente racional, um conhecimento que seja obra exclusiva da razão.
A exposição dos aspectos gerais da doutrina kantiana do conhecimento permitir-nos-á perceber que quer o racionalismo tradicional, quer o empirismo, são concepções erróneas do conhecimento.

Como é possível o conhecimento científico?

Kant efectua uma análise transcendental do conhecimento, ou seja, embora não despreze o papel da experiência, pretende mostrar quais as condições de possibilidade a priori — não empíricas — do conhecimento. Mostrar como é possível o conhecimento — entenda-se o conhecimento científico ou epistémico — consistirá em responder à questão "O que posso conhecer?". Podemos desdobrar esta questão nas seguintes:
Como começa o conhecimento?
De onde deriva?
Até onde pode ir? Quais os seus limites?
A doutrina kantiana pode resumir-se nas seguintes respostas:
A.    Todo o conhecimento começa com a experiência.
B.    O conhecimento científico não deriva da experiência, mas sim de certas formas
apriori do sujeito que conhece.
C.    O conhecimento científico, embora não derive da experiência, começa com ela e
por isso só pode ser conhecimento de realidades empíricas ou sensíveis.
Antes da análise de cada um destes pontos da doutrina kantiana importa estabelecer, como marco orientador da nossa reflexão, a definição geral do conhecimento científico. O que é, para Kant, conhecer cientificamente?
Conhecer cientificamente é estabelecer uma relação necessária ou causal (mediante o conceito de causa) entre determinados objectos que estão ao alcance do sujeito humano.
A natureza dos objectos que estão ao alcance do sujeito, e como são conhecidos cientificamente, é o que iremos explicitar analisando a doutrina do conhecimento. Regressemos aos três pontos que a resumem.

1.TODO O CONHECIMENTO COMEÇA COM A EXPERIÊNCIA
Para haver conhecimento é preciso que haja coisas para conhecer e que entremos em contacto com elas, isto é, que algo nos seja dado.
A sensibilidade é a faculdade que põe o sujeito humano em contacto directo com as coisas. Este contacto consiste na recepção das impressões sensíveis provenientes das coisas. A esta recepção damos o nome de intuição sensível ou experiência. Como é possível a recepção dos dados ou impressões sensíveis? É possível mediante duas formas a priori (não são coisas ou objectos empíricos) com as quais a nossa sensibilidade está "equipada": o espaço e o tempo. Sem estas duas formas de recepção dos dados sensíveis, a bem dizer nada receberíamos porque não poderíamos dar sentido, organizar o que nos é dado.
O que faz a sensibilidade com essas duas formas? — Estabelece relações entre os dados ou impressões provenientes das coisas. Estabelecer relações entre os dados sensíveis consiste em espacializá-los e temporalizá-los.
Consideremos duas coisas: o sino de uma igreja e um autocarro. Consideremos um sujeito que se prepara para iniciar o seu dia de trabalho. O sino da igreja dá um certo número de badaladas. Pouco depois o autocarro passa com o seu barulho característico. As badaladas do sino e o barulho da passagem do autocarro são duas impressões sensíveis que a sensibilidade do sujeito recebe.
Mas recebe-as como? a) espacializando-as; b) temporalizando-as.
a)    Espacializando-as.
Espacializá-las significa intuir que provêm de coisas que a minha sensibilidade situa como estando ou passando, por exemplo, em-frente à minha casa, no alto de uma colina, à direita da Biblioteca Municipal. Ou seja, ao referir-me às coisas cujas impressões recebo, utilizo uma linguagem carregada de expressões espaciais — mesmo que não as verbalize — estabeleço relações espaciais.
b)    Temporalizando-as.
Temporalizar as impressões significa intuir que as impressões que recebo são captadas de uma forma sucessiva. Assim, primeiro ouvi o barulho da passagem do autocarro.
Utilizo então uma linguagem com expressões temporais e estabeleço, mesmo que não me aperceba disso, relações temporais (de simultaneidade ou de sucessão temporal) entre as impressões que recebo.
Note-se bem: espaço e tempo não são coisas nem impressões sensíveis, mas sim formas que temos de "falar" das coisas e de organizar ou relacionar as impressões sensíveis. São, portanto, formas do sujeito (da sensibilidade do sujeito) que lhe permitem intuir os objectos. Só há experiência ou intuição empírica das coisas porque no sujeito há duas formas (espaço e tempo) que permitem receber as impressões sensíveis.
O contacto imediato com os objectos dá-se ao nível da sensibilidade, faculdade receptiva. A recepção das impressões tem como sua condição de possibilidade estruturas universais e necessárias da sensibilidade: o espaço e o tempo. Assim, a recepção dos dados sensíveis consiste na sua espacialização e temporalização. Espaço e tempo não são coisas, mas as formas sem as quais não intuímos, isto é, relacionamos e coordenamos a matéria bruta das sensações. A intuição sensível, ponto de partida do nosso conhecimento, é uma atitude receptiva, mas não absolutamente passiva, porque é constituída por uma matéria e uma forma. A matéria é constituída por aquilo que intuímos (a matéria do fenómeno), a forma pela maneira como recebemos os dados intuitivos, estabelecendo entre elas uma relação es-pácio-temporal (a forma do fenómeno).
Aqui se começa a ver que o conhecimento, embora tendo a sua origem na experiência, tem contudo o seu fundamento nas estruturas a priori do sujeito. Isso será ainda mais nítido no plano do entendimento.

2.O CONHECIMENTO CIENTÍFICO NÃO DERIVA DA EXPERIÊNCIA MAS SIM DE CERTAS FORMAS A PRIORI DO SUJEITO.
Como já foi dito, conhecer cientificamente é estabelecer relações necessárias ou causais entre os objectos que estão ao alcance do sujeito. Esses objectos ou dados são aqueles que podemos enquadrar no espaço e no tempo. Kant dá-lhes o nome de fenómenos. As impressões ou dados sensíveis espacializados e temporalizados são os fenómenos (aquilo que acontece no espaço e no tempo). Intuir, receber as impressões sensíveis mediante as formas da sensibilidade (espaço e tempo) não é estabelecer relações necessárias ou causais entre os dados sensíveis. A relação causal estabelece uma dependência, um vínculo, entre determinados dados sensíveis. Ora, a sensibilidade não faz mais do que estabelecer uma relação es-pácio-temporal entre os dados sensíveis: inclui-os num mesmo plano mas deixa-os desligados entre si, organiza-os como acontecendo "aqui" ou "ali", "agora" ou "depois" mas não estabelece qualquer vínculo necessário entre eles.
Para que o conhecimento científico efectivamente se constitua não podemos limitar-nos àquilo que a sensibilidade faz.
Conhecer cientificamente é explicar, dizer por que razão algo acontece aqui e agora e não simplesmente que algo acontece aqui e agora. Ora, esta relação causal entre certos fenómenos só pode estabelecer-se se o sujeito estiver equipado com um conceito explicativo que é o conceito da causa. Este conceito é uma estrutura ou forma a priori do entendimento que ao "ser projectada" sobre dois fenómenos os relaciona transformando um em causa e o outro em efeito. Como o conceito de causa é uma forma do nosso entendimento e não algo que deriva das coisas e como sem ele não podemos estabelecer a relação causal ou necessária que caracteriza o conhecimento científico devemos concluir que embora começando com a experiência a ciência deriva de formas a priori do sujeito.
Vejamos: Sem o espaço e o tempo não podemos encontrar nada para conhecer, isto é, não podemos receber informações ou dados sensíveis. Sem as formas a priori do entendimento, sobretudo o conceito de causa, não podemos estabelecer entre os dados recebidos pela sensibilidade a relação causa-efeito que os permite explicar.
Suponhamos dois dados sensíveis.
A — Um certo aumento da temperatura.
B — A dilatação de um corpo.
Conhecer cientificamente é explicar, encontrar a causa do que acontece. Quando eu digo que a dilatação é devida ao aumento da temperatura estou a estabelecer uma relação causal entre A e B; mediante o conceito de causa estabeleço uma ligação necessária entre dois dados sensíveis (que a sensibilidade recebeu) transformando um em causa e outro em efeito, dizendo "sempre que acontece A num determinado lugar e num determinado momento acontecerá B como seu resultado, efeito ou consequência".
A sensibilidade unicamente pode dizer que aqui e agora acontece A e aqui e depois acontece B. Não possuindo o conceito de causa só pode aplicar as suas formas; i. e.; espa-cializar e temporalizar o que recebe. Assim, não pode explicar ou conhecer cientificamente.

3.O CONHECIMENTO CIENTÍFICO EMBORA NÃO DERIVE DA EXPERIÊNCIA COMEÇA COM ELA E POR ISSO SÓ PODE SER CONHECIMENTO DE REALIDADES EMPÍRICAS
O entendimento só pode estabelecer relações entre os dados que a sensibilidade recebeu. Por outras palavras o entendimento não intui (para isso teria de estar equipado com as formas do espaço e do tempo que como sabemos, pertencem só à sensibilidade). Como a intuição é a forma de encontrarmos algo para conhecer isso significa que sem a intervenção da sensibilidade nada nos seria dado para conhecer. Se só por meio da sensibilidade o entendimento pode referir-se às coisas e encontrar a matéria do seu conhecimento devemos concluir que conhecer realidades que ultrapassem o plano espácio-temporal, que estão fora do alcance da nossa sensibilidade, é impossível. Essas realidades metafísicas não sendo objectos da nossa intuição não poderão ser também objectos de conhecimento científico.
O conhecimento científico, embora não derive da experiência começa com ela e por isso só pode ser conhecimento de realidades empíricas ou sensíveis (fenómenos).
Conclusão: A metafísica não pode ser uma ciência.
Sendo verdade que todo o conhecimento começa com a sensibilidade, com a recepção de impressões sensíveis, um conhecimento que seja pura obra da razão (sem qualquer referência à sensibilidade) é impossível. A razão deve aceitar humildemente este facto e não ceder a extravagâncias. Um conhecimento puramente racional é ilusão.
A razão pura intervém no processo de conhecimento regulando o entendimento, dando--Ihe como regra agir como se fosse possível prolongar a síntese causal para lá da experiência, isto é, em direcção à causa última que nos daria a essência da realidade.
O conceito de causa só pode ter um uso imanente, e por isso as ideias da razão (resultado da nossa sede de Absoluto) serão sempre formas vazias. Contudo, constituindo-se como ideais farão com que o entendimento vá submetendo os dados empíricos a relações causais cada vez mais amplas, isto é, com que este nunca dê por encerrada a sua actividade  de explicação dos fenómenos.
Assim, como diz Kant, todo o conhecimento humano começa com intuições, passa a conceitos e termina com ideias.
Ao negar a auto-suficiência da razão como fonte de conhecimento, Kant quer dizer que a razão não pode ter um uso constitutivo à margem da intuição sensível: às ideias da razão pura que representam realidades incondicionadas não pode corresponder qualquer dado intuitivo que lhes dê conteúdo porque não temos intuição das realidades que elas representam. A razão enquanto pura só pode ter um uso legítimo ao apontar ao entendimento uma meta ideal da sua actividade cognitiva e deve humildemente aceitar essa limitação, porque caso contrário perder-se-á no oceano tempestuoso das antinomias, contradizendo-se a si mesma e ficando à deriva. Em suma, as questões metafísicas (Deus, liberdade, imortalidade da alma) não podem ter uma solução científica ou teórica e são as antinomias da razão pura teórica que convencem esta de que uma metafísica digna de crédito só poderá constituir-se no uso prático transformando-se então em fé racional (com um fundamento moral) à margem dos delírios especulativos que a atrofiavam.



A IMPORTÂNCIA DA "DISTINÇÃO CRÍTICA" FUNDAMENTAL: O PAPEL CRUCIAL DA DISTINÇÃO FENÓMENO-NÚMENO
Vimos que a razão especulativa — acerca de um problema como o da liberdade — movida pelo desejo de saber se há ou não liberdade cedia à tentação metafísica aventurando-se em domínios proibidos ao nosso conhecimento. Resultado: desorienta-se, fica bloqueada por teses contraditórias entre si. Como sair deste impasse? Como salvar a razão dessa irracionalidade que é a contradição consigo mesma?
A solução deste conflito encontra-a Kant na distinção fenómeno-númeno. Esta distinção permitirá à razão recuperar a sua sensatez.
Para compreendermos essa solução temos de primeiro esclarecer o que tem a distinção fenómeno-númeno a ver com o conceito de liberdade.
A análise sobre as condições que tornam possível o conhecimento humano mostrando--nos como ele começa e de onde deriva evidenciou os seus limites inultrapassáveis: só conhecemos as realidades fenoménicas ou sensíveis, os objectos espácio-temporalmente enquadrados. Ao conhecer estes o entendimento estabelece entre eles relações necessárias ou causais que se traduzem em enunciados a que Kant dá o nome de leis naturais. Assim, o campo de acção do nosso conhecimento é o mundo dos fenómenos, o mundo natural, submetido à legislação do entendimento. As leis naturais ou científicas regem o comportamento dos fenómenos, das realidades sensíveis ou naturais. De que modo? De um modo necessário. Isto significa que as leis naturais são cumpridas e não podem ser infringidas. O homem enquanto fenómeno, i. e., enquanto realidade sensível ou natural, não pode, tal como os outros seres naturais, fugir ao cumprimento dessas leis necessárias.
Vejamos um caso muito simples: uma lei como a da queda dos corpos diz-nos que sempre que um corpo perde o seu ponto de apoio, cai. Posso evitar as condições que conduzem à queda mas, uma vez perdido o ponto de apoio, caio. Cumpro essa lei porque assim tem de ser, não há alternativa possível. Não foi uma decisão minha, foi um acontecimento que não derivou da minha vontade. Em suma, não foi um acto livre. As leis naturais, que regem o comportamento dos fenómenos, são rígidas, necessárias, não deixam alternativa. Não se pode escolher cumpri-las ou não: são cumpridas porque não podem deixar de ser cumpridas. Assim sendo, o mundo dos fenómenos é o reino da necessidade. Não há nele lugar para a liberdade, para uma acção livre, i. e., para uma acção independente das leis naturais.
Não fazendo parte do mundo dos fenómenos, a liberdade — realidade metafísica — é incognoscível. Não podemos saber, em termos científicos, se somos livres ou não. As extravagâncias da razão pura teórica, o impasse a que chegou na sua tentativa de demonstrar a liberdade, confirmaram que esta não pode ser objecto de copnhecimento científico. A questão que surge imediatamente é esta: não sendo a liberdade objecto de conhecimento — não é uma realidade fenoménica — quererá isso dizer que ela é uma ilusão, uma ideia inconcebível, um conceito contraditório, logicamente impossível? Dizer que não a podemos conhecer - que não podemos saber se somos livres — implica dizer que não podemos pensar que somos livres?
A grande preocupação de Kant, estabelecido o carácter incognoscível da liberdade, é a de salvaguardar o conceito de liberdade, impedir a sua negação.
Como o faz? Mediante a distinção fenómeno-númeno. Essa distinção surge da análise das possibilidades do conhecimento humano. Vejamos: uma vez que o nosso conhecimento tem limites — não pode ultrapassar o plano dos fenómenos — falar de limites é tornar legítimo pensar ou supor que há algo para lá do que o nosso conhecimento pode atingir. Impede-se assim, a redução da realidade ao plano dos fenómenos. É legítimo pensar que existe um outro plano ou dimensão da realidade — o plano numénico ou supra-sensível porque só assim faz sentido falar de "limites" do conhecimento.
Ora, se podemos pensar num plano da realidade que não é fenoménico podemos pensar que há realidades que agem independentemente das leis naturais ou necessárias. Como agir independentemente das leis naturais é a característica essencial de uma acção livre, então podemos pensar que há realidades que agem livremente. A liberdade não é um facto mas também não podemos declará-la uma ilusão. Podemos pensá-la, ou seja, a ideia de liberdade é logicamente possível, não é contraditória. Não é legítimo pensar que só o mundo fenoménico é real. Logo é legítimo pensar que há liberdade. Dada a distinção fenómeno--númeno (distinção entre o que se pode conhecer e o que se pode pensar) o homem pode, enquanto ser racional (inteligível, numénico) e não simplesmente sensível, pensar-se como livre, i. e., como não estando na sua totalidade submetido a leis naturais.

SÍNTESE
1    — Não é legítimo dizer que só o mundo dos fenómenos é real: seria reduzir a realidade aos limites do nosso poder de conhecimento.
2    — Se podemos pensar que nem tudo é fenómeno podemos pensar ou supor que há realidades que não estão submetidas a leis naturais (p. ex., o homem enquanto   númeno ou ser racional).
3    — Assim sendo impede-se a negação da liberdade, ou seja, pode-se pensar que,enquanto númeno, o homem age independentemente das leis naturais ou necessárias.
A distinção fenómeno-númeno impede a negação da liberdade, isto é, impede a negação de acções não submetidas a leis naturais: a liberdade ou a causalidade livre é pensável.
Esta importante conclusão coloca-nos em condições de compreender como aquela distinção permitirá solucionar o conflito especulativo da razão consigo mesma.

5.1. A solução da "antinomia da liberdade" mediante a distinção fenómeno-númeno
Vimos que a razão pura ao pretender resolver de uma forma demonstrativa o problema da liberdade (há ou não há liberdade?) era capaz quer de negar quer de afirmar a liberdade. E fazia-o em ambos os casos com base em demonstrações aparentemente irrefutáveis. Quer a tese (há liberdade) quer a antítese (não há liberdade) são o resultado de demonstrações logicamente inatacáveis, embora se neguem uma à outra. Esta contradição da razão deixa esta num impasse, não sabe a que conclusão dar o título de verdadeira. Fica desorientada, à deriva. A distinção fenómeno-númeno vem salvá-la desta desorientação e, passe a expressão, "pô-la na ordem".
A solução kantiana da antinomia consiste não em considerar que uma das afirmações é verdadeira e a outra falsa mas em dizer que nenhuma delas é absolutamente falsa.
Consideremos a tese que diz "não há liberdade" (por ser negativa tem o nome de antítese). Esta afirmação é verdadeira se nos estivermos a referir ao mundo dos fenómenos: neste plano reina a necessidade natural. Consideremos a afirmação "Há liberdade". Uma vez que a distinção fenómeno-númeno nos ensinou que a liberdade é pensável — podemos sem contradição pensar que somos livres — deve-se alterar tal afirmação demasiado peremptória transformando-a em "Podemos pensar que há liberdade". Esta afirmação que já revela a consciência das limitações do nosso conhecimento é verdadeira dado que podemos pensar — uma vez que a realidade não é só o mundo natural ou fenoménico — que há realidades que transcendem a dimensão submetida às leis naturais.
Kant evita o choque, o conflito, entre estas duas afirmações ao dizer que valem para diferentes domínios ou dimensões da realidade e não pretendem valer para a realidade no seu todo. Se dizemos que não há liberdade isso é legítimo se estivermos a referir-nos só ao mundo dos fenómenos; se dizemos que podemos pensar que há liberdade isso é legítimo se não estivermos a referir-nos ao mundo dos fenómenos mais sim a realidades que transcendem esse plano e que embora incognoscíveis são inegávei.

5.2. A distinção fenómeno-númeno é a condição que torna possível a passagem ao uso prático da razão (à reflexão sobre a acção moral)
A distinção fenómeno-númeno (distinção entre o que é cognoscível e o que é incognos-cível mas, contudo, pensável) estabeleceu o domínio em que a ciência se pode exercer legitimamente (o mundo dos fenómenos) e o domínio em que ela não pode aventurar-se, sob pena de perder o direito ao título da ciência (o mundo supra-sensível ou numénico). Solucionou o conflito especulativo da razão teórica determinando que qualquer aventura fora do plano espácio-temporal é uma extravagância de nefastas consequências.
Se essa função é importante o grande e fundamental objectivo da distinção é permitir a passagem do uso teórico da razão ao uso prático, i. e., a passagem da reflexão sobre as condições que tornam possível o conhecimento científico à reflexão sobre o que é agir moralmente.
Kant diz que "a liberdade é o fundamento da acção moral". Isto quer dizer que não podemos falar de acção moral sem a suposição de que o homem é livre.
Se não for possível pensar que há acções livres, independentes das leis naturais, i. e., se o conceito de liberdade for contraditório, não se pode efectuar a passagem ao uso prático da razão, à reflexão sobre a "experiência" moral.
Como podemos pensar que o homem é númeno (ser racional, inteligível) e não simplesmente fenómeno (ser empírico ou sensível) podemos então, sem contradições, pensar que o homem é livre. Não se afirma que o homem é livre mas impede-se a negação da liberdade. A liberdade é um conceito logicamente possível. Poderá então Kant partir para a sua reflexão sobre a acção moral.'1'
É de notar ainda que ao salvaguardar a reflexão sobre a acção moral, melhor dizendo, a própria possibilidade de acções morais, a distinção fenómeno-númeno salvaguarda, contra os excessos especulativos da razão, a credibilidade do conhecimento científico. Se ficássemos no impasse da "antinomia da liberdade", indecisos entre "todos os fenómenos se explicam por uma causalidade livre — há liberdade" e "todos os fenómenos são efeitos de uma causalidade necessária — não há liberdade", a ciência estaria em dúvida. Se a ciência consiste em explicar os fenómenos a partir de causas necessárias, encadeadas umas nas outras — não pode haver liberdade no mundo fenoménico pois isso implicaria uma ruptura no encadeamento necessário dos fenómenos — não definir em que plano a liberdade é possível e em que plano ela é impossível, tornaria problemática de direito a fundamentação da ciência. Se a "antítese" é a negação da possibilidade da moral, a "tese" é negação daquilo de cuja possibilidade Kant nunca duvidou: a existência do conhecimento científico da Natureza. A solução da antinomia declara falsas quer a tese quer a antítese se elas pretenderem valer para a realidade em geral; declara-as verdadeiras — com uma atenuação da afirmação "Há liberdade" — se passarem a valer para domínios distintos.
Protege-se a ciência de "pretensões inimigas" — as da razão "especulativa" e a moral de atitudes redutoras — a redução do real ao cognoscível.

(1) Podemos acerca do homem dizer sem contradição, apesar de não parecer, que l — ele pode pensar que é livre e 2 — que ele não é livre. Com efeito, enquanto númeno, i. e., enquanto ser racional, não submetido a leis naturais, podemos pensar que ele é livre (com efeito, númeno é tudo o que transcende o mundo natural não se regendo pelas leis desse mundo). Em suma, dado que pode pensar que não é um ser simplesmente natural o homem pode pensar que é livre. Enquanto fenómeno ou ser natural, submetido a leis naturais — leis que negam a liberdade — o homem não pode pensar que é livre: não é de facto livre.


 SEGUNDA PARTE

A resposta à questão: «O que devo fazer?». As realidades metafísicas são objecto de fé racional.

PRÓLOGO

Comecemos por relembrar algumas conclusões da Crítica da Razão Pura antes de iniciarmos o estudo da Crítica da Razão Prática.
Kant resume a sua reflexão na Crítica da Razão Pura dizendo numa frase célebre:
"Tive de suprimir o saber para dar lugar à crença (à fé racional)." Esta frase, à primeira vista ambígua, deve traduzir-se do seguinte modo: "Tive de negar que fosse possível conhecer cientificamente as realidades metafísicas para dar lugar à fé racional nessas realidades."
O "saber"0' que é suprimido é a metafísica dogmática (a metafísica tradicional ou racionalista), ou seja, aquela disciplina que confiava cegamente no poder de conhecimento da razão pura e julgava (sem qualquer análise das suas possibilidades e limites) que as realidades supra-sensíves ou metafísicas eram cientificamente cognoscíveis. Kant ao investigar em que condições e em que limites é possível o conhecimento chega à conclusão de que a razão pura nada pode conhecer: a sua vocação metafísica não pode obter uma satisfação de tipo científico.
A ciência está limitada ao plano dos fenómenos. Esta limitação não é uma supressão mas sim a única forma de o conhecimento humano ter direito ao título de conhecimento científico. Para lá do mundo dos fenómenos ("país do entendimento", que é a faculdade dos conhecimentos) há o abismo. A ciência, sobretudo a Física, mediante a investigação transcendental das fontes e condições do conhecimento, viu estabelecido um campo de acção do qual não pode sair sob pena de deixar de ser ciência. Quanto ao uso especulativo da razão, a aventura fora do domínio espácio-temporal equivale a uma desorientação, à deriva num oceano tempestuoso. É uma aventura que nunca chegará a bom termo. A metafísica dogmática é que é suprimida. As suas pretensões são inadmissíveis. Contudo, o interesse metafísico, constitutivo do homem, permanece. Suprime-se a metafísica enquanto ciência mas conserva-se necessariamente o interesse pelos objectos que lhe são próprios: liberdade, imortalidade e Deus. Aboliu-se a pretensão de conhecer cientificamente esses objectos , mas não se anularam esses objectos nem o interesse por eles porque seria irracional e, a limite, negar o que mais profundamente define a natureza humana.
A reflexão de Kant sobre o conhecimento científico estava desde o início marcada por uma preocupação não científica ou teórica mas moral ou prática: impedir a negação da liberdade. Para isso teve de limitar o campo de acção da ciência: se tudo fosse objecto de conhecimento científico transformaríamos toda a realidade em fenómenos submetidos a leis naturais ou necessárias e assim anularíamos a liberdade ou causalidade livre.
" É evidente que a ciência (representada em especial pela física) não é nem podia ser negada porque é um facto indesmentível. Numa passagem do prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant diz que teve de "suprimir o saber para dar lugar à crença" (fé racional).
Por "saber" não se pode entender a ciência mas as pretensões da metafísica dogmática, do racionalismo dogmático, ao estatuto de ciência. O termo alemão que corresponde ao termo "ciência" é Wissenschaft e, para evitar erros e confusões, não surge na passagem indicada. Aparece o termo Wissen.
Como o domínio espácio-temporal é o plano da causalidade natural ou necessária, i. e.,, da necessidade, do determinismo, submeter toda a realidade a estes limites em que impera a legislação do entendimento seria anular a possibilidade da liberdade, poder de decidir, de produzir uma série de actos sem ser determinada necessariamente por causas anteriores.
Ora, na hipótese de a liberdade ser um conceito contraditório, uma impossibilidade lógica, algo de impensável, a moral não teria qualquer sentido. Com efeito, diz Kant, "a moral é aquilo que se funda sobre a liberdade ou causalidade livre".
Portanto, a Crítica da Razão Pura Teórica teve como objectivo salvaguardar e legitimar em termos teóricos o uso prático da razão (a moral).
Postas estas considerações podemos antecipar, em termos gerais, o que vai acontecer na Crítica da Razão Prática.
Se uma razão pura teórica é, em certa medida, indesejável, já o mesmo não acontece com a razão pura prática. No plano da acção defende-se a realidade objectiva de uma razão pura prática, isto é, uma razão que por si só, independentemente da sensibilidade, pode determinar a vontade e as suas acções. No plano da acção, se queremos que esta tenha valor moral, temos de estabelecer que a vontade se deve determinar única e exclusivamente por princípios racionais. Portanto, aqui, ao contrário do que acontecia no plano do conhecimento, defende-se a existência de uma razão que, independentemente da sensibilidade, constitui o princípio das acções da vontade.
Para Kant há um primado da razão prática sobre a razão teórica. A razão prática pode e deve ser pura, isto é, "não receber lições da experiência", e é mediante a razão pura prática que temos acesso ao incondicionado, ao plano metafísico que a razão especulativa ambicionava alcançar. As realidades metafísicas serão afirmadas a título de postulados morais, ou seja, justificar-se-á a nossa crença em Deus, liberdade e imortalidade com base numa argumentação moral. Assim, elas adquirirão uma realidade objectiva moral que embora não corresponda a uma extensão do nosso conhecimento teórico nos obriga a admitir a existência de tais objectos. O fundamento de uma nova metafísica, não dogmática , encontra-se assim no plano prático ou moral. Não podendo ser uma ciência teórica, a metafísica transforma-se num conhecimento moral, isto é, numa certeza subjectiva com fundamento moral a que se dá o nome de fé racional.

1.A "EXPERIÊNCIA" DO DEVER: A LIBERDADE COMO OBJECTO DE FÉ RACIONAL

Sabemos que é impossível conhecer cientificamente as realidades metafísicas, ou seja, que não é possível demonstrar cientificamente a existência da liberdade, da imortalidade da alma e a existência de Deus. O que nos resta? Acreditar que essas realidades existem e justificar ou encontrar razões que fundamentem essa crença. A nova metafísica a cuja constituição iremos assistir será uma metafísica "dentro dos limites da razão", adequada ao que enquanto homens está em nosso poder. As extravagantes e ilusórias pretensões de transformar a metafísica numa ciência foram rejeitadas para constituir uma metafísica credível, respeitadora dos limites da nossa razão: esta limitar-se-á muito humildemente a justificar a fé na existência de realidades transcendentes. Afirmámos antes que, para Kant, a liberdade é o
fundamento da acção moral1". Portanto, a reflexão sobre a acção moral, sobre o uso prático da razão, partirá do esclarecimento da relação entre liberdade e moral.
A reflexão kantiana sobre a moral parte de um dado indiscutível: a presença na consciência do ser racional de uma lei que se apresenta sob a forma de dever e a que dá o nome de lei moral. Ao contrário da lei natural que descreve como os seres naturais se comportam a lei moral não descreve o que acontece — não explica factos — mas diz-nos como devemos agir. É uma lei da razão e não uma lei do entendimento.
A lei moral é uma lei que devemos cumprir. A lei natural é uma lei que cumprimos sem poder deixar de o fazer. Cumprimo-la quer queiramos quer não. É precisamente o facto de a lei moral ser uma lei de dever que permite ao homem reconhecer-se como livre. Só se diz "deves!" a quem pode cumprir o dever ou fugir ao seu cumprimento. A "experiência" do dever — cumprido ou infringido — é inseparável da admissão da liberdade. Ter consciência de que devo fazer isto ou aquilo é ter consciência de que posso (sou livre para) fazer isto ou aquilo, i. e., de que está dependente da minha vontade fazer ou não o que devo. Como diz Kant, a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade, ou seja, é aquilo que me permite tomar consciência de que sou livre.
Exemplo: um homem comete um roubo.
Esta acção pode ser explicada causalmente em termos espácio-temporais: a hereditariedade desse indivívuo, a sua educação deficiente, más companhias e outros factores. A sua acção pode ser considerada como um efeito destas relações. Mas, além de dizermos que a acção, a vontade, está causalmente determinada, também emitimos sobre ela um juízo de valor. Censuramos esse homem por ter agido como agiu, dizendo: "Não devia ter agido assim." Na base desta censura, deste "devia", está implícita a convicção de que o indivíduo referido podia ter agido tal como devia e não como o fez. A censura revela a referência a uma lei da razão (a lei moral) que devia ter sido cumprida. A vontade do homem que cometeu o roubo podia ter sido motivada pelo cumprimento da lei moral, racional, em vez de ser "determinada" por motivos empíricos (interesses monetários e outros), podia libertar-se destes e obedecer, por seu consentimento, àquela.
Como diz Kant: "Ele julga, pois, que pode fazer uma coisa porque tem consciência de que deve e reconhece assim em si a liberdade que, de outro modo, sem a lei moral, permaneceria para ele desconhecida."
Por outro lado, se eu não for livre não faz sentido falar da presença da lei moral ou do dever na minha consciência. Em termos kantianos isso significa dizer que a liberdade é a ratio essendi, a razão de ser, o fundamento que torna inteligível a presença da lei moral em mim.
A consciência de que sou livre não é um conhecimento nem uma intuição mas simplesmente uma crença moralmente necessária. Uma "necessidade prática". A liberdade é uma afirmação que consiste numa fé racional. Não é objecto de explicação nem de intuição. Eu não sei se sou ou não livre mas sei que tenho de acreditar que sou livre. Porquê? Porque se não for livre não fará qualquer sentido a presença da lei moral na minha consciência.
01 Em sentido lato, acção que podemos julgar como boa ou má, como devida ou indevida.
Dizer que tenho de acreditar que sou livre é postular (exigir) a realidade da liberdade. Vemos assim que há uma razão ou justificação de ordem moral para a crença nessa realidade metafísica que é a liberdade. O argumento pode resumir-se do seguinte modo:
Se eu não for livre estarei simplesmente submetido a leis naturais.
                     Ora a consciência do dever, "a voz do dever”, é um facto..

Logo, embora não possa saber se sou livre, tenho de acreditar que o sou, porque só há dever para quem é livre.
A existência da lei moral em nós exige que admitamos a liberdade como condição que torna possível a presença dessa lei na nossa consciência. A lei moral é um "facto racional", um dado indesmentível da nossa consciência como seres racionais. A liberdade é um postulado da nossa consciência moral, uma exigência desta, porque só o pressuposto de que somos livres torna compreensível a presença em nós da voz do dever (da lei moral).
Em termos rigorosos, diremos que a "experiência" do dever, o reconhecimento da presença da lei moral em mim, me permite tomar consciência da necessidade de acreditar que sou livre. Assim, Kant justifica a crença na liberdade justificando por que temos de acreditar que somos livres. Justificada, com base numa razão de ordem moral, a crença na liberdade, a reflexão kantiana encaminhar-se-á para a explicitação do que será acreditar racionalmente em Deus e na imortalidade da alma. Como os postulados da existência de Deus e da imortalidade da alma só se tornam compreensíveis mediante um aprofundamento dos conceitos da lei moral e de acção moral teremos de explicitá-los. Por momentos poremos entre parênteses as duas questões metafísicas para as reencontrarmos mais tarde já familiarizados com as linhas gerais da moral kantiana.

SÍNTESE SOBRE O POSTULADO DA LIBERDADE

1    —A lei moral é um "facto racional", i. e., algo que está efectivamente presente na consciência do ser racional em geral e do homem em particular.
2    — Essa presença indubitável significa que na minha consciência enquanto ser racional se faz ouvir a "voz do dever": a lei moral é uma lei que me diz como devo agir.
3    — Só há dever para quem pode cumprir ou infringir: lei moral e liberdade são indissociáveis.
4    — Assim, embora não possa saber se sou livre tenho de acreditar que o sou, porque só assim a presença da lei moral na minha consciência tem sentido ou fundamento. Tenho de acreditar que sou livre (exijo ou postulo a realidade da liberdade) porque caso contrário a lei moral não será um "facto racional" (inteligível) mas sim absurdo.
5    — Mediante a reflexão sobre a "experiência" do dever, de realidade teoricamente possível (pensável), a liberdade transforma-se em realidade praticamente (moralmente) necessária: sem a liberdade a lei moral não teria fundamento.
6    — Se a ciência era um facto cujas condições de possibilidade descobrimos nas estruturas a priori do sujeito epistémico, a lei moral é um facto cujas condições de possibilidade estão no sujeito não enquanto cognoscente mas como agente moral cuja liberdade aquele facto (a lei moral) exige para ter fundamento.

2. O QUE É AGIR MORALMENTE?

Habitualmente consideramos que agir moralmente é agir bem, é fazer o que devemos, cumprir o dever ou a lei moral. Para Kant, estas definições afiguram-se insuficientes, superficiais. Com efeito, podemos agir bem e, contudo, a nossa acção não ter valor propriamente moral. O que é para Kant uma acção moralmente válida? É uma acção determinada ou decidida por uma vontade puramente racional ou desinteressada. Assim, só podemos falar em termos correctos de uma acção moral se a vontade que decidiu realizá-la não for influenciada nessa decisão por nenhuma inclinação sensível, ou seja, por nenhum interesse, nenhuma paixão, nenhum afecto. Sem a pureza ou a racionalidade da vontade não há acção moral digna desse nome. Não basta cumprir o dever para agirmos moralmente: é preciso, para que isso aconteça, cumprir o dever pelo dever. O dever cumpre-se de uma forma moralmente válida quando o motivo que, em determinado caso, inspira e anima a nossa acção é pura e simplesmente a vontade de cumprir o dever.

2.1.Acções por dever e acções conformes ao dever
Para esclarecer esta definição, Kant introduz uma distinção famosa: uma coisa é agir em conformidade com o dever; outra coisa bem diferente é agir por dever. Exemplo: se devolveu a carteira com receio de posteriormente ser descoberto ou para ser elogiado pela sua honestidade agiu em conformidade com o dever. Se devolveu a carteira simplesmente porque essa era a acção correcta agiu por dever, ou seja, só houve um motivo a influenciar a sua acção: fazer o que devia ser feito.Tudo depende do motivo ou da razão por que agiu honestamente.
Kant não admite que se cumpra o dever em virtude das desejáveis consequências que daí possam resultar. Seria deixar o cumprimento do dever ao sabor das circunstâncias, dos interesses do momento. Isso implicaria que quando não tivéssemos vantagem ou interesse em cumprir o dever não haveria razão alguma para o fazer.
As acções em conformidade com o dever não são acções contrárias ao dever. Contudo, nessas acções, para cumprir o dever precisamos de razões suplementares. Mais importante do que o cumprimento do dever é o nosso interesse pessoal.
As acções feitas por dever são acções em que o cumprimento do dever é um fim em si mesmo (cumprir o dever pelo dever). A vontade que decide agir por dever é a vontade para a qual agir correctamente é o único motivo na base da sua decisão. Dispensa razões suplementares, não age como diz o homem comum «com segundas intenções». Por outras palavras, perante uma regra ou norma moral como «Sê honesto», a vontade respeita-a sem qualquer outra intenção.
Do ponto de vista moral, entendido desta forma tão rigorosa, a única razão que existe para cumprir o dever é o respeito pelo dever. O motivo porque cumprimos o dever tem de ser absolutamente independente de interesses pessoais, de desejos – o desejo de agradar aos outros -, de sentimentos -a compaixão e o amor - e de traços de carácter como a generosidade. Consideremos o caso de uma pessoa que sempre que possível ajuda pessoas carenciadas. Age bem mas se o fizer porque lhe agrada ajudar os outros, porque é próprio do seu carácter ou porque lhe agrada o reconhecimento da sua bondade, a sua acção não é feita por dever. E isso, para Kant, apesar de não ser contrário ao dever, apesar de não ser censurável, não é moralmente valioso. Imagina, por outro lado, que o comerciante do nosso exemplo, age honestamente porque é próprio da sua natureza ou do seu carácter agir assim.
O que nos motiva quando cumprimos o dever é para a ética kantiana o problema decisivo. Não se trata simplesmente de cumprir o dever.
A lei moral diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer circunstância cumprir o dever pelo dever». Pensa em normas morais como «Não deve mentir»; «Não deves matar»; «Não deves roubar». A lei moral, segundo Kant, diz-nos como cumprir esses deveres, qual a forma correcta de os cumprir.
Tudo isto pode parecer exagerado e demasiado rigoroso. Não é suficiente cumprir o dever? Se não roubo, não minto e não mato, não é isso suficiente para agir moralmente bem? É preciso mais alguma coisa? Não há tanta gente neste mundo que age contrariamente ao dever? Não deveríamos contentar – nos com o facto de que há pessoas que fazem o que devem fazer seja qual for o motivo? Se pago os impostos que devo pagar, que importa saber se é por receio de ter problemas com o fisco? Kant discorda. O motivo da acção é decisivo porque caso contrário, daremos o mesmo valor moral a acções boas feitas por bons motivos e acções boas feitas por motivos errados.

2.2. Moralidade e direito (legalidade) em Kant.
Como já vimos, Kant distingue entre acções conformes ao dever e acções por dever.
A característica essencial das primeiras é a legalidade (são acções legais); a característica essencial das segundas é a moralidade (são acções morais).
Uma acção com valor legal é diferente de uma acção com valor moral. A legalidade
de uma acção consiste em agir devidamente mas não pura e simplesmente por dever: pago os impostos, ajo devidamente, não por absoluto respeito pela lei moral, mas para evitar problemas com a "mão pesada da justiça". A minha acção é então determinada por princípios externos.
A moralidade de uma acção é incompatível com a presença, por mínima que seja, de qualquer inclinação ou interesse. Ajo por dever, ajo assim porque é meu dever agir assim e nada mais. Assim, a acção moral é determinada por um princípio interno: obedeço à lei racional da minha consciência, independentemente de qualquer coacção ou influência externa. Obedeço à lei moral pela lei e não por causa de qualquer castigo externo.
Assim pode-se agir legalmente por interesse (desejo de lucro, de evitar represálias), mas agir moralmente e agir por interesse é contraditório. Com efeito, a moralidade de uma acção consiste na pureza da intenção, na sua absoluta racionalidade e desinteresse.
Desde modo apercebemo-nos de que Kant distingue a Ética do Direito i. e., distingue entre lei moral e jurídica.
A lei moral é, por assim dizer, um princípio voluntário autónomo de conduta. A lei moral não é uma ordem que exerça uma coacção externa. Com efeito, ela é a lei imanente à consciência moral do sujeito que age. Caso eu não cumpra a lei moral, i. e., se, em determinada situação, a minha acção não se inspirar única e simplesmente no respeito pela lei moral mas se deixar influenciar por interesses e inclinações, não serei por isso levado a tribunal. Assim, por exemplo, posso pagar impostos para evitar problemas. Por não ter valor moral (a acção é realizada não por ser considerada boa em si mesma mas como meio para evitar aborrecimentos) essa acção não deixa de ter valor legal. Falando em termos exclusivamente morais, i. e., tendo em consideração simplesmente a intenção e não o resultado, a forma como se agiu e não o que se fez, eu sou o juiz e o réu.
Como diz V. Mathieu:
«E o inverso daquilo que acontece com as leis do Estado, que ordenam fazer isto ou aquilo, mas não podem obrigar a que seja feito com determinada intenção; ordenam, por exemplo, que se paguem os impostos e têm meios para obrigar a isso, mas (mesmo que, por vezes, o desejem) não têm meios para fazer com que esses actos sejam cumpridos mais com uma intenção do que com outra (digamos, com a intenção de servir o Estado ao invés de simplesmente fugir às sanções). E isso ocorre precisamente porque constituem uma legislação externa. Se a vontade do indivíduo, em si mesma, não concorda com o que elas pedem, só podem ameaçar com certos castigos ou prometer-lhe certos prémios para obter o que desejam. Nesse caso, porém, a intenção do indivíduo não estará voltada directamente para aquilo que quer a lei, mas apenas para evitar o castigo e obter o prémio. E a lei jurídica, mesmo que se proponha a isso, não pode transformar essa intenção em outra, porque, novamente, não tem outro meio senão as ameaças ou promessas para se fazer valer.»
Citado por G. Realce e Dario Antiseri in História da Filosofia, Edições Paulistas, p. 185

2.4.O cumprimento do dever é um imperativo categórico.

Deve ter reparado que a lei moral exige um respeito absoluto pelo dever e que se apresenta sob a forma de imperativo («Deves»). Pense nos seguintes imperativos:
a)    «Deves ser honesto porque a honestidade compensa»
b)    «Deves ser honesto!»
Em a) apresenta-se uma regra (deves ser honesto) e a razão pela qual ela deve ser seguida. O cumprimento da regra está associado a uma condição. «Se queres ser compensado deves ser honesto». Trata-se de um imperativo hipotético. Diz que só no caso de querermos ser compensados devemos ser honestos.
O cumprimento do dever subordina-se a uma condição e por isso cumprindo o dever estamos, contudo, a fazê-lo por interesse. Em b) apresenta-se uma regra cujo cumprimento não depende de um interesse que assim queiramos satisfazer. Diz-nos que devemos ser honestos porque esse é o nosso dever e não porque é do nosso interesse. A esta regra incondicional que exige o cumprimento do dever sem qualquer outro motivo a não ser o respeito pelo dever dá Kant o nome de imperativo categórico. Este imperativo exige que ultrapassemos os nossos interesses e ajamos de forma desinteressada.
O imperativo categórico é uma obrigação absoluta e incondicional. Exige que a vontade seja exclusivamente motivada pela razão, que seja independente em relação a desejos, interesses e inclinações particulares. Ordena que uma acção seja realizada pelo seu valor intrínseco, que seja querida por ser boa em si e não por causa dos seus efeitos. «Diz a verdade!» é um exemplo de imperativo categórico.
O imperativo hipotético é uma obrigação condicional porque a realização da acção depende de desejarmos o que com ela podemos obter. Para Kant, as acções em conformidade com o dever são acções que encaram o cumprimento do dever como útil e não como um fim em si.Na sua perspectiva, todas as teorias éticas que encaram os deveres morais como obrigações dependentes das consequências transformam-nos em imperativos hipotéticos. Ora, a moralidade não pode para Kant depender de condições e circunstâncias que variam conforme as inclinações, desejos e interesses das pessoas.  
«Se queres ser respeitado, diz a verdade» é um exemplo de imperativo hipotético.

 Kant apresentou várias formulações do imperativo categórico para tentar explicar mais claramente o que é agir por dever e como posso eu saber que estou a agir por dever.

2.4.1 A fórmula da lei universal: como uma máxima se pode tornar lei universal

     A primeira formulação é de especial importância:

“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”
Uma outra formulação muito próxima desta diz: «Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza».

Uma máxima é moralmente aceitável se puder ser universalizada. O que quer isto dizer? Que deve poder valer para todas as pessoas transformando-se em princípio universal de conduta: «Todos devem agir assim».
Para esclarecer como a supracitada fórmula do imperativo categórico -conhecida por fórmula da lei universal – serve para testar a correcção moral das nossas máximas, o próprio Kant apresenta um exemplo: imagina que uma pessoa com problemas financeiros decide pedir dinheiro emprestado. Sabe que não pode devolver o dinheiro que lhe for emprestado mas prometê-lo - mentir – é a única forma de obter aquilo de que precisa. A máxima da acção poderia enunciar-se assim “Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro emprestado ao seu dono.” Poderia essa pessoa querer que ela fosse universalmente aceite, querer que todos fizessem o mesmo? Kant está a perguntar se é possível sem contradição querer tal estado de coisas. Ora a obediência universal a tal regra criaria um estado de coisas em que mesmo os seus interesses acabariam por ser lesados. A referida pessoa não pode querer sem contradição universalizar a excepção que abriu para si própria porque se tornará excepção para todos. Se todos nós fizéssemos promessas com a intenção de não as cumprir todos desconfiaríamos delas e o empréstimo de dinheiro baseado em promessas acabaria. A prática de fazer e de aceitar promessas desapareceria. A máxima referida auto-destrói-se ao ser universalizada porque ninguém poderá agir de acordo com ela.
A acção moralmente correcta é decidida pelo indivíduo quando adopta uma perspectiva universal. Como? Colocando de parte os seus interesses, a pessoa pensará como qualquer outra que também faça abstracção dos seus interesses adoptando, portanto, uma perspectiva universal.
Regressa ao exemplo dado e verifica que qualquer pessoa que abstrai dos seus interesses e pensa imparcialmente fará o mesmo: será honesta e sabendo que não o pode devolver não pedirá dinheiro emprestado. Aplica a mesma ideia a deveres morais comuns como “ “Paga o que deves”, “Sê leal”, “Não roubes” e verifica, com Kant, que só o interesse e parcialidade do agente pode levar à violação de tais regras ou deveres morais. Eliminada a parcialidade, pensamos segundo uma perspectiva universal e aprovamo-los.

2.4.2 A fórmula da humanidade: ao cumprir correctamente o dever respeitamo – nos e respeitamos os outros.
Continuando com o mesmo exemplo, pensa no modo como quem pede dinheiro emprestado sem intenção de o devolver está a tratar a pessoa que lhe empresta dinheiro. É evidente que está a tratá-la como um meio para resolver um problema e não como alguém que merece respeito, consideração. Pensa unicamente em utilizá-la para resolver uma situação financeira grave sem ter qualquer consideração pelos interesses próprios de quem se dispõe a ajudá-lo.
Sempre que fazemos da satisfação dos nossos interesses a finalidade única da nossa acção, não estamos a ser imparciais e a máxima que seguimos não pode ser universalizada. Assim sendo, estamos a usar os outros apenas como meios, simples instrumentos que utilizamos para nosso proveito.
Explicitando o conteúdo da primeira fórmula do imperativo categórico (a fórmula da lei universal), Kant resumiu esta ideia numa outra fórmula conhecida por «fórmula da humanidade»:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.
Segundo esta fórmula, cada ser humano é um fim em si e não um simples meio. Por isso, será moralmente errado instrumentalizar um ser humano, usá-lo como simples meio para alcançar um objectivo. Os seres humanos têm valor intrínseco, isto é, dignidade. Esta dignidade confere-lhes um valor absoluto, não devendo ser tratados como coisas ou objectos. O respeito pela sua dignidade é o respeito pela sua racionalidade. Devido à sua condição de ser racional o ser humano tem um valor incomparável (não comparável com o valor das coisas e dos animais que têm, para Kant, um valor meramente instrumental). Como ser racional nenhum ser humano vale mais do que outro. Uma vida humana não é mais valiosa do que outra nem várias vidas humanas valem mais do que uma. Devido a esta fórmula a ética kantiana é frequentemente denominada ética do respeito pelas pessoas.
Até agora sabemos que a «fórmula da humanidade» exige que o ser racional respeite os outros seres racionais e seja por eles respeitado.
Mas ela diz mais: diz que nenhum ser humano se deve tratar a si mesmo apenas como um meio. A prostituição, o masoquismo são exemplos de violação desta norma mas mesmo quando desrespeitamos directamente os direitos dos outros como no caso da escravatura, da violação, do roubo e da mentira estamos também a abdicar da nossa dignidade.
Para terminar esta análise outra nota importante: a fórmula não proíbe as pessoas de serem meios porque se o proibisse, proibiria qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe um comerciante de usar os seus clientes para prosperar, mas se ele enganar nos preços e não devolver dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas como meios, instrumentos ou objectos.
Esta é a mais famosa das fórmulas do imperativo categórico que aparece nas obras de Kant sobre ética. O seguinte texto explica que devemos a Kant a fundamentação propriamente filosófica do conceito de pessoa.
«A noção de pessoa está no centro do pensamento moral do Ocidente. Tem uma fonte histórica dupla: jurídica e religiosa. Por um lado tem a sua origem no direito romano e atribui-se a todo aquele que tem uma existência civil e direitos, ao contrário do escravo, que não tem direitos. Foram os filósofos estóicos que lhe conferiram um sentido moral: o termo 'pessoa' designava originariamente uma máscara, tendo depois tomado o sentido de papel numa peça de teatro e, por analogia, como é evidente em Epicteto e Marco Aurélio, a função que a Providência estabelece para cada homem durante a sua vida.
A outra fonte histórica é a tradição judaico-cristã. O Antigo Testamento prescreve o amor por todos os homens (inclusive os estrangeiros) e o socorro à viúva, ao órfão, ao oprimido, ao pobre e ao esfomeado. O Novo Testamento retoma este dever de caridade universal, mas vai mais longe, identificando o amor ao próximo com o amor de Deus e pregando o amor aos próprios inimigos. Além disso, afirma a igualdade das almas, coisa muito diferente da função exercida na cidade e da posição ocupada na hierarquia social. O que importa não é a aparência exterior, mas o interior, aquilo que constitui a alma da acção no sentido pleno da palavra. Daí a proibição de julgarmos os outros porque o futuro está aberto para o homem, para a mulher adúltera, para o filho pródigo. A humanidade é, para o cristianismo, a virtude essencial e traduz-se pelo espírito de simplicidade do qual as crianças são, ao longo dos Evangelhos, o símbolo.
Contudo, nos Evangelhos, a ideia de igualdade das pessoas apresenta-se sob a forma de predicação e de exortação: tratar todos os homens como humanos e iguais. É com Kant, no século xvm, que a pessoa se torna uma noção propriamente filosófica. É verdade que, educado no seio de uma família pertencente a uma seita protestante muito rigorosa (o pietismo), Kant meditou longamente sobre os grandes textos da Bíblia e do cristianismo, mas o seu objecto principal foi o de constituir uma moral racional, independente da religião. A pessoa é o homem enquanto ser racional. Em 1785, na obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes Kant lança as bases de uma ética da pessoa e, no essencial, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, retoma esses princípios. Nessa obra Kant enuncia pela primeira vez estes princípios fundamentais: o homem é um fim em si, é uma pessoa e distingue-se das coisas. Para Kant considerar o homem como fim em si é considerar cada homem como uma pessoa, isto é, como um valor absoluto e não como um meio ao serviço de um fim.
Assim o ser racional identifica-se com a razão e, tal como esta, não deve estar subordinado a condições estranhas, a princípios externos.
Compreende-se assim que a pessoa se distingue de tudo o que, sob o nome de necessidade e de inclinações, constitui aquilo a que se chama individualidade. Daí Kant tira a máxima do imperativo moral que deve ordenar a nossa conduta, quer individual quer colectiva, e que prescreve ao mesmo tempo o respeito por si e o respeito pelos outros.
A divisão social do trabalho implica que cada homem exerce uma função útil no seio da sociedade. A vida social funda-se numa reciprocidade de serviços e, neste sentido, todos os homens são meios ao serviço dos outros. Por exemplo, o médico chamado a meio da noite à cabeceira de um doente não tem o direito de recusar o seu socorro, mas não se torna por isso escravo do doente que o retribui. A sua dignidade de pessoa não é de modo algum afectada e assim deve ser para qualquer profissão, trabalho ou função. Ninguém tem o direito moral de impor a um homem uma tarefa que possa alienar o seu valor como ser humano. Ninguém tem o direito moral de utilizar um ser humano para obter prazer ou satisfazer interesses. Ninguém tem o direito moral de se tratar a si próprio como uma coisa. É faltar ao respeito por si mesmo, tal como qualquer forma de injustiça ou de opressão é uma falta de respeito pelos outros.
Apercebemo-nos de que aquilo a que se convencionou chamar civilização ocidental se funda nesta ética da pessoa teorizada por Kant. Os fundamentos estabelecidos por Kant foram desenvolvidos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e pela Declaração dos Direitos do Homem de 1948, continuando a ser um ideal a realizar plenamente nos factos e nas instituições. Respeito e dignidade da pessoa humana, valor absoluto da pessoa, são expressões que se tornaram familiares e que Kant pela primeira vez explicou: a pessoa é o ser racional, é o ser livre.» [Louis-Marie Morfaux, L'Épreuve écrite de philosophie]

2.4.3 A autonomia da vontade
A mais importante novidade da ética kantiana consiste na afirmação de que nas decisões moralmente correctas nós somos legisladores criando regras válidas para todos os seres racionais. O agente moral é autónomo quando age por dever, ou seja, quando a sua máxima passa o teste do imperativo categórico e se torna regra segundo a qual todos podem agir. O agente autónomo aceita a lei moral não porque alguma autoridade externa o convenceu ou porque receia as consequências de não a aceitar. Aceita-a porque a lei é criada por si mesmo quando as escolhas morais são imparcial e desinteressadamente determinadas pela sua razão. É ao mesmo tempo legislador e sujeito dessa lei. A ética kantiana não admite autoridades morais externas e superiores à razão. A autonomia é a unidade entre o que a razão ordena e o que a vontade quer.

Já sabemos que, para Kant, são dois os critérios sem os quais não podemos atribuir moralidade às nossas acções: 1 - agirmos de acordo com uma máxima universal e 2 – agirmos encarando os outros como fins em si e não simplesmente como meios. Ao agir segundo uma máxima universal, estou a encarar o outro como um fim em si mesmo e, por sua vez, ao encarar o outro como um fim em si mesmo, estou a agir segundo uma máxima universal.
É isto o que a lei moral exige. Esta lei é a voz da razão no ser humano que em muitos casos ouve a voz dos seus interesses. A lei moral exige que sejamos racionais. Supõe que pago os impostos simplesmente porque considero ser esse o meu dever. Neste caso, a minha vontade sem ser influenciada por outra coisa (o medo de ser penalizado, a opinião dos outros, etc.) decide fazer o que deve fazer. Kant diz que esta vontade é autónoma. Cumpre o dever pelo dever. É uma vontade boa. A vontade autónoma é a que age por dever.
A heteronomia da vontade é a característica de uma vontade para a qual o cumprimento do dever não é motivo suficiente para agir. Tem de recorrer a outros motivos (o receio das consequências, o temor a Deus, etc.), a vontade submete-se a autoridades que não a razão. Por isso, a sua acção é heterónoma, incapaz de respeitar incondicionalmente o dever. A vontade heterónoma não age por dever. Quando cumpre o dever, cumpre-o por interesse. No melhor dos casos, age em conformidade com o dever. Todas as éticas de tipo consequencialista são, para Kant, heterónomas, reduzem a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos.


A teoria kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas por quaisquer autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua razão o critério dos deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever. O conflito entre o dever, que é ordem que damos a nós mesmos (“Sê honesto!” ordena o comerciante a si mesmo), e os interesses que nos afastam do dever (“Mas os 50 € davam-me jeito…” hesita o comerciante), explica porque o dever parece ter uma origem numa autoridade exterior que nos contraria.
Quando decido independentemente de quaisquer interesses, isto é, quando sou imparcial e adopto uma perspectiva universal, obedeço a regras que criei ao mesmo tempo para mim e para todos os seres racionais. Uma vontade autónoma é uma vontade puramente racional, que faz sua uma lei da razão, lei presente na consciência de todos os seres racionais. Ao agir por dever obedeço à voz da minha razão e nada mais.

Poderá objectar: «Mas se eu, por exemplo, cumprir o dever de não mentir por considerar que essa é a vontade de Deus, como está expresso nos dez mandamentos, não estarei a agir de uma forma moralmente correcta?». Kant responderá que não. Nas questões morais a vontade do ser humano não é um meio para o cumprimento da vontade de um outro ser. Porquê depender de uma autoridade externa - ser heterónomo - para definir o dever moral se podemos ser autónomos, isto é, se podemos mediante máximas desinteressadas e imparciais estabelecer o que é dever para nós e para todos?

2.4.4. A vontade autónoma é a vontade boa.
A boa vontade age por dever. A vontade heterónoma em Kant, age apenas em conformidade com o dever. Ao decidir-se por determinada acção a vontade autónoma não visa outro fim senão o respeito puro e simples pela lei moral. Sendo uma vontade determinada por um imperativo categórico e não hipotético, o critério da sua moralidade não está no conteúdo do acto mas sim na sua forma não empiricamente condicionada. Deste modo, agindo por puro e simples respeito pela lei moral, a boa vontade é a vontade boa em si mesma. Não cumpre o dever porque isso é útil mas porque assim deve ser. Sendo uma vontade que age desinteressadamente ou que se determina a agir de uma forma puramente racional a boa vontade é puramente formal e não material. A bondade da vontade não deriva da bondade dos seus resultados. Com efeito, podemos querer fazer mal a uma pessoa e acabar involuntariamente por lhe fazer bem. E podemos querer fazer bem a uma pessoa e, involuntária ou inadvertidamente, acabar por lhe fazer mal. O que é importante do ponto de vista moral é o motivo ou a intenção do acto. Ter uma intenção correcta é o que torna uma vontade boa. Mas que tipo de intenção caracteriza uma boa vontade? A boa vontade é do ponto de vista moral a única coisa absolutamente boa. O que torna a vontade boa? A acção que pratica? Não. Os resultados que consegue? Não. A aptidão para alcançar bons resultados? Não, embora ser bem sucedida não seja, de modo algum, de desprezar. O que torna boa a vontade é a intenção que subjaz à sua acção. Supõe, mais uma vez, que devolves uma carteira que encontraste no refeitório da tua escola. Fizeste o que de acordo com as normas morais estabelecidas devias fazer. Mas é este facto suficiente para, segundo Kant, dizer que agiste de boa vontade? Não. Podes ter realizado essa acção por receio de ser descoberto, para não ficares de consciência pesada, e não por teres pensado que era essa a acção correcta. A tua intenção não foi propriamente cumprir o dever mas evitar problemas. Podemos ver que o que caracteriza a boa vontade é cumprir o dever sem outro motivo ou razão a não ser fazer o que é correcto. Dirá Kant que a boa vontade é a vontade que age com uma única intenção: cumprir o dever pelo dever.

Assim:
A sua máxima pode transformar-se em princípio da acção de todo e qualquer
ser racional.
Como o móbil da sua acção é puramente racional, a boa vontade consiste no
respeito pela racionalidade de todo e qualquer ser humano, nunca o conside
rando simplesmente como meio para a realização de um interesse.
Se respeitar puramente a lei suprema da razão corresponde ao respeito da au
tonomia e dignidade de qualquer ser humano, isso nada mais significa do que
a autonomia da própria vontade. Tornando-se racional, a vontade boa não é
determinada por nada de exterior, dá a si mesma a lei da sua acção.
Fazendo sua a lei da razão, a boa vontade é uma vontade livre e racional que se eleva acima dos interesses e das inclinações.

3.O SOBERANO BEM: OS POSTULADOS DA IMORTALIDADE DA ALMA E DA EXISTÊNCIA DE DEUS.

A lei moral apresenta-se ao homem sob a forma de imperativo categórico, exigindo a um ser que pode não a respeitar que aja pura e simplesmente por respeito por ela. Como a lei moral é uma lei da razão, o que ela de forma categoricamente imperativa ordena é que, ao agir, o homem estabeleça como motivo da sua conduta o respeito por aquilo que o define como homem: a racionalidade. É o respeito pela humanidade do homem que a lei moral exige quando se apresenta sob a forma de dever à vontade: se eu decido agir desta ou daquela maneira devo fazê-lo assumindo a razão e nada mais como motivo da minha escolha. Só assim essa escolha, melhor dizendo, a máxima que orienta a minha acção, terá validade universal, ou seja, poderá ser pensada como devendo ser querida por todo o ser racional na minha situação.
A moralidade da acção é independente do fim a que a acção pode tender, melhor dizendo, a acção moral só pode ser a acção boa em si mesma e não a acção que só é boa como meio para a realização de um fim. Em suma, só a acção puramente desinteressada, não determinada por um fim que lhe é exterior e para a realização do qual é meio ou instrumento, pode ser moral.
Que assim seja não impede, contudo, que a lei moral aponte à vontade o dever de promover aquilo a que Kant chama o objecto total da vontade. Só que a moralidade da vontade não depende da realização desse objecto, denominado Soberano Bem. Já vimos que ela depende da forma que a acção assume: a acção é moral quando a vontade assume a forma da racionalidade e não se submete às inclinações da sensibilidade.
Kant não entende o Soberano Bem como o fundamento da determinação da vontade boa — só a lei moral pode ser esse fundamento — mas como o objecto total para o qual a vontade boa naturalmente tende.
Mais precisamente o que entende Kant por Soberano Bem?
Kant distingue entre Soberano Bem e Bem supremo. O Soberano Bem é o Bem completo, a totalidade composta por dois elementos: a virtude e a felicidade.
 A virtude é o Bem supremo, sendo a condição absoluta do outro termo do Soberano
Bem, pois só ela nos torna dignos de ser felizes. Sem a virtude, i. e., o esforço de aperfeiçoamento moral da vontade, o Soberano Bem não é possível: Porquê? Porque a felicidade de que aqui falamos não é uma felicidade qualquer. E a felicidade a que o ser virtuoso tem direito, a felicidade que ele merece.
No interior dessa totalidade denominada Soberano Bem, a Virtude é o Bem supremo, é condição incondicionada. Isto contudo não quer dizer que agir virtuosamente é ou implica ser feliz. A virtude não dá a felicidade mas unicamente nos torna dignos e merecedores desta. Deste modo, a virtude não é o Bem completo, embora seja a sua condição primeira. Ser condição não significa ser um meio. A Virtude não é um meio para um fim que seria a felicidade. Devemos ser virtuosos por respeito puro e simples pela lei moral e não porque a virtude nos faz merecer a felicidade. Já sabemos que a acção moral é aquela que tem o seu fim em si mesma. Se a virtude fosse um meio haveria contradição nos termos. Além disso não seria bem supremo ou incondicionado.
Postas estas considerações, vejamos a que propósito surgem os postulados da imortalidade da alma e da existência de Deus, exigências da razão prática.

3.1. O postulado da imortalidade da alma
Já sabemos que Kant define a acção moralmente válida de uma maneira rigorosa e austera; agir moralmente é agir de uma forma puramente racional. Seria a característica de uma vontade que suprimisse as inclinações sensíveis enquanto princípios determinantes ou coadjuvantes do agir, que "calasse" em absoluto a "voz" da sensibilidade. Tal conceito de acção moral conduz-nos, em última análise, à conclusão de que agir de uma forma moralmente válida implica ser moralmente perfeito. Tal como o conhecimento absoluto ou perfeitamente acabado era o ideal que presidia profundamente à dinâmica cognitiva do entendimento, aqui é a pureza e a racionalidade absoluta do agir — a perfeição moral — que dinamizam o nosso comportamento. Devemos procurar ser moralmente perfeitos. Que um ideal irrealizável — não podemos deixar de ser homens "demasiadamente humanos" — se torne um dever pode parecer desconcertante. Contudo, só assim, querendo mais do que pode ser, poderá o homem elevar-se, ser mais do que agora é, afastar-se o mais possível da mesquinhez, da crueldade, da sub-humanidade que frequentemente revela. Esse esforço de aperfeiçoamento moral não terá fim — dado que a perfeição não é própria do homem — e recebe o nome de virtude.
Postas estas considerações temos os elementos necessários para compreender o postulado da imortalidade da alma.
Por que razão temos de admitir ou afirmar a imortalidade da alma?
Que argumento moral nos leva a ter de acreditar na imortalidade, i. e., numa duração indefinida do nosso ser?
O seguinte argumento:
A lei moral considera nosso dever agir de uma forma puramente racional ou absoluta mente desinteressada.
A pureza e a racionalidade absoluta da vontade são sinónimos de perfeição moral ou santidade.
Logo a lei moral considera nosso dever procurar a perfeição moral.
A perfeição, seja ela qual for, é inalcançável, contudo devemos procurar alcançá-la.
O que resulta daqui? Que, querendo cumprir o que a lei moral ordena, estamos destinados a um aperfeiçoamento moral indefinido, que nunca acabará (a virtude).
Quem se esforça sem fim por ser moralmente perfeito, quem se esforça por cumprir absoluta e plenamente a lei moral, tem de durar indefinidamente.
A esta duração sem limites que é exigida para que seja possível falar de um aperfeiçoamento moral sem fim, dá Kant o nome de imortalidade da alma.
A imortalidade da alma é postulada com base num argumento moral, ou seja, para que aquilo que a lei moral ordena faça sentido: para que seja possível procurar cumprir o dever.
Se a razão teórica não demonstrou a imortalidade da alma, esclareceu contudo que a realidade não se reduz à existência empírica ou sensível. A razão prática mostra que ela está inseparavelmente ligada à lei moral, ou seja, tem um fundamento moral. Com efeito, é postulada para evitar que, logo à partida, o Soberano Bem seja impossível. Não se demonstra que a alma é imortal, mas sim por que razão temos de acreditar (fé da razão) na imortalidade da alma.
A imortalidade da alma é a duração indefinida sem a qual seria inconcebível o esforço de aperfeiçoamento indefinido daquele que procura cumprir a lei moral plenamente.
Explicando de outra forma:
«A 'perfeita adequação da vontade à lei moral' é a 'santidade'. Ora, como esta a) é exigida categoricamente e b) ninguém neste mundo pode concretizá-la, 'ela só poderá ser encontrada num progresso ao infinito', ou seja, num progresso que cada vez mais se aproxime daquela 'adequação completa'. 'Mas tal progresso infinito só é possível pressupondo uma existência e uma personalidade do próprio ser racional que perdurem ao infinito — e isso tem o nome de imortalidade da alma.' Trata-se de um modo bastante insólito de conceber a imortalidade e a vida eterna (o paraíso): isto é, não como uma condição de certo modo estática mas precisamente como um incremento e um progresso infinitos. Para Kant, a imortalidade e a outra vida constituem um aproximar-se-sempre-mais-da-santidade, um contínuo crescimento na direcção da santidade." [Giovanni Reale e Dario Antiseri.]

3.2. O postulado da existência de Deus
A virtude, o esforço de aperfeiçoamento moral em direcção à santidade, não dá por si nenhuma recompensa mas dá-nos o direito a uma recompensa, torna-nos merecedores dela. De que recompensa se trata? Da felicidade.
Sermos dignos da felicidade, mas não podermos ser felizes é moralmente absurdo. Saímos desse absurdo postulando (exigindo) um Deus, omnisciente e omnipotente, que proporcione a felicidade aos méritos e aos graus da virtude.
Por outras palavras, a lei moral ordena-me que seja virtuoso; este esforço de aperfeiçoamento moral torna-me digno da felicidade; precisamente por isso, é lícito postular a existência de Deus.
Como define Kant a felicidade? Como "o estado do ser racional ao qual na totalidade da sua existência tudo acontece de acordo com o seu desejo ou vontade". A felicidade implica o acordo ou a harmonia da Natureza com a vontade ou os desejos do ser racional. Esta harmonia total e permanente não pode ser realizada pelo homem porque é um ser racional que pertence à Natureza e não é o seu autor. Não pode assim governá-la, dominá-la de forma a que a felicidade que o virtuoso merece seja possível. Para que o Soberano Bem seja realizável, para que à virtude possa corresponder a felicidade, temos de postular a existência de uma causa da natureza, distinta dela e que tem o poder de a pôr de acordo com a vontade do ser moral. A essa causa chamamos Deus, ser moralmente perfeito e superiormente inteligente. Deus é a condição necessária para que o esforço de aperfeiçoamento moral do homem possa ter a "recompensa" que merece e na proporção devida, se assim se pode falar.
Só Deus, ser moralmente perfeito e considerado criador do Universo, evita o absurdo imoral que seria ser digno da felicidade e não poder ser feliz. Vemos que a afirmação da existência de Deus torna possível esperar que a virtude seja recompensada. Ela é um postulado moral porque corresponde a uma exigência de justiça.
Deus tem de existir para que a esperança na recompensa legítima tenha fundamento. Que o virtuoso mereça ser feliz e a felicidade seja impossível é injusto. Não podemos saber se Deus existe (a sua existência não é um facto). Como sem Deus não será possível haver justiça moral, temos de acreditar que Deus existe.
Em suma, se a lei moral, ao estabelecer como objecto da vontade a realização do Soberano Bem, nos levou a exigir a imortalidade da alma como condição do seu principal elemento (o bem supremo), também nos conduziu a postular a existência de Deus como condição da união entre a virtude e a felicidade (bem condicionado) de que o esforço de aperfeiçoamento moral nos torna dignos.

SÍNTESE SOBRE O TEMA DO SOBERANO BEM

Embora a moralidade da vontade não dependa da realização do Soberano Bem, Kant define este como objecto total da vontade, cujas condições de possibilidade a lei moral exige. O conceito de Soberano Bem distingue-se do conceito de bem Supremo, porque é o bem completo, a representação da harmonia entre virtude e felicidade. Uma vez que a moralidade da acção é independente do seu objecto ou do seu resultado, Kant considera que no interior dessa totalidade que é o Bem completo, devemos dar o nome de bem supremo à virtude, isto é, ao esforço de total e intrínseca conformidade da vontade com a lei moral. Como o esforço de aperfeiçoamento moral, que é a virtude, nos torna dignos da felicidade, pode dizer-se que a virtude é o bem supremo, porque sem ela o bem completo não seria possível. Assim, a virtude não é o bem completo, mas é a sua condição fundamental.
A felicidade será o bem condicionado porque só a virtude nos torna dignos e merecedores dela. A felicidade não é um fim para o qual o esforço de aperfeiçoamento moral seja um meio, porque isso seria contraditório com a definição de acção moral, como acção boa em si mesma, isto é, cujo motivo puro e simples é o respeito pela lei moral. Se a felicidade fosse princípio de moralidade, não haveria moralidade, porque todos os imperativos seriam hipotéticos e todas as acções praticadas por interesse e dependentes do seu resultado objectivo. Assim, para termos direito à felicidade, esta não pode ser motivo fundamental das nossas decisões. A felicidade é aqui simplesmente uma necessidade que só o virtuoso tem o direito de reclamar. Ora, como é imoral merecer a felicidade e esta ser impossível ou inconcebível, postula-se a existência de Deus, como ser que pode dar ao virtuoso aquilo que a sua consciência moral reclama. Assim, Deus tem de existir, para que o objecto completo da lei moral seja possível, mas a sua existência não é necessária para que as nossas acções sejam moralmente válidas.
    
4. SÍNTESE DA DOUTRINA KANTIANA
SOBRE O TEMA DA METAFÍSICA

1.    A Crítica da Razão Pura trata do problema da ciência, enquadrando-o numa questão geral que é a seguinte: "Será a Metafísica uma ciência?" Estuda-se o problema da cientificidade da Metafísica.
Para sabermos se há uma resposta científica às questões metafísicas (liberdade, imortalidade da Alma e Deus), devemos previamente saber em que consiste e como é possível o conhecimento científico (Física e Matemática). Sabendo como é possível a ciência decidiremos se a Metafísica tem ou não um estatuto científico.
a)Qual o resultado desta investigação?
Começando com a intuição empírica e embora derivando das formas a priori do sujeito, todo o nosso conhecimento se limita aos objectos enquadrados no espaço e no tempo. Só as realidades sensíveis (os fenómenos) podem ser conhecidas. As realidades metafísicas, por transcenderem a dimensão do espaço e do tempo, por não serem captáveis pelas formas da nossa intuição empírica, não são objectos cognoscíveis.
b)    Distinção entre conhecer e pensar.
Se as realidades metafísicas não são cognoscíveis podem contudo ser pensadas. Os limites do conhecimento não são os limites do pensamento. A distinção conhecer-pensar corresponde à distinção fenómeno-númeno ou coisa em si. A limitação do conhecimento ao campo dos fenómenos não é a limitação da realidade à dimensão espácio-temporal (fenoménica). Nem toda a realidade é fenómeno. Seria absurdo reduzir o ser, a realidade, ao nosso poder de conhecimento (aos objectos que podemos conhecer).
c)    A possibilidade da liberdade.
O mundo natural é o conjunto dos fenómenos submetidos às leis necessárias da nossa faculdade de conhecimento. Os seres naturais são aqueles cujo comportamento é determinado por leis que não podem ser infringidas. Se nem tudo o que existe é fenómeno, nem tudo está submetido à necessidade natural, às leis que se cumprem sem que seja preciso o consentimento de qualquer vontade. Então a liberdade é uma realidade logicamente possível, ou seja, pensável. A distinção fenómeno-númeno, embora não afirme a realidade efectiva da liberdade, impede a sua negação.
Só é suprimido um determinado tipo de metafísica. Aquela que, esquecendo os limites do conhecimento humano, pretende ser ciência. A metafísica dogmática é que é suprimida. As suas pretensões são inadmissíveis. Contudo, o interesse metafísico, constitutivo do homem, permanece. Suprime-se a metafísica enquanto ciência mas conserva-se necessariamente o interesse pelos objectos que lhe são próprios: liberdade, imortalidade e Deus. Aboliu-se a pretensão de conhecer cientificamente esses objectos (ilusão), mas não se anularam esses objectos nem o interesse por eles porque seria irracional e, a limite, negar o que mais profundamente define a natureza humana.
2 — A Crítica da Razão Prática deu uma "resposta" em termos não científicos aos três grandes problemas metafísicos: liberdade, imortalidade da alma e existência de Deus:
A liberdade, exigência da razão pura prática enquanto condição sem a qual é incompreensível que haja dever ou lei moral, é o postulado fundamental. Temos de acreditar que a liberdade é uma realidade para que possamos falar legitimamente de acções morais. Sem este postulado nenhum outro faria sentido porque a lei moral não teria fundamento.
Como é que da afirmação da liberdade chegamos aos outros postulados: à imortalidade da alma e à existência de Deus?
A autêntica liberdade consiste na acção que tem como princípio determinante o puro respeito pela lei moral, lei da razão pura. A acção puramente racional seria acção absoluta e autenticamente livre. Uma acção puramente moral, uma absoluta, perfeita e permanente coincidência da vontade livre com a razão é, para o homem ser não puramente racional (pertence pela sua sensibilidade ao mundo fenoménico ou empírico), um dever constante e nunca um dado adquirido. Assim, o esforço de aperfeiçoamento (a virtude) em direcção à perfeição moral (à pureza moral absoluta) é um esforço infinito, sem fim. Como a lei moral exige que sejamos moralmente perfeitos, temos de postular (exigir) uma duração indefinida do ser que procura a perfeição moral. Essa duração sem fim tem o nome de imortalidade da alma. A afirmação da imortalidade da alma não é um conhecimento científico mas sim uma exigência moral. Este postulado é uma crença moral: a imortalidade da alma é algo em que temos de crer para que o esforço constante em direcção à pura e absoluta racionalidade do agir seja concebido como possível.
A virtude, o esforço de aperfeiçoamento moral, a luta contra os obstáculos irracionais da moralidade, torna-nos dignos da felicidade. Mas como o virtuoso, ser finito, não pode pôr os acontecimentos do mundo de acordo com aquilo que merece, como se pode ser virtuoso mas infeliz, Kant vai postular (exigir) a existência de um Deus, ser moralmente perfeito e omnipotente, "supremo justiceiro", que estabelecerá a harmonia desejada entre a virtude e a felicidade (harmonia a que se dá o nome de Soberano Bem).
Deus é algo cuja existência é uma exigência moral: é postulado para impedir o absurdo que consistiria em não poder ser feliz aquele que é moralmente digno da felicidade. A existência de Deus é algo em que racionalmente temos de crer para que a atribuição da felicidade ao virtuoso seja concebida como possível. Deus é aqui objecto de uma crença ou fé racional (fé com um fundamento moral): Kant não demonstra a existência de Deus mas por que razão (moral) devemos acreditar que Deus existe.
Só através da liberdade, razão de ser da existência da lei moral em nós, podemos demonstrar não que Deus existe, ou que somos imortais, mas por que razão tem de acreditar que Deus existe e que somos imortais. Com efeito, a lei moral, cuja existência se funda na liberdade, ao exigir a realização do Soberano Bem, exige, como condições desse Bem completo, a imortalidade da alma e a existência de Deus, realidades que a razão pura teórica considerava como questões essenciais e inevitáveis. É a liberdade que constitui, por excelência, a via de acesso ao supra--sensível satisfazendo em certa medida (de forma não científica, que seria sempre ilusória) o desejo de absoluto ou de incondicionado que caracteriza a razão, quer no seu uso teórico, quer no seu uso prático.
Depois de descobrir a liberdade como postulado fundamental na experiência do dever e ao postular, ou seja, afirmar como exigência moral a imortalidade da alma e a existência de Deus, Kant funda uma nova metafísica. A metafísica era impossível enquanto ciência mas torna-se possível enquanto fé moral. É no plano moral que as suas questões encontram "respostas". Não podendo ser um conhecimento teórico (em Kant significa, em geral, científico), a metafísica pode ser um "conhecimento" prático (uma fé racional).
Conclusão: o primado da razão prática
«A razão tem dois usos: teórico e prático.
Em cada um deles está em jogo o interesse mais profundo da razão. O interesse do uso teórico consiste em conhecer o objecto segundo princípios a priori e tentando encontrar uma causa incondicionada para a totalidade dos fenómenos.
O interesse do uso prático consiste em determinar a vontade de uma forma absoluta e incondicionada sendo o seu objecto supremo a realização do Soberano Bem. Neste duplo jogo de interesses, qual dos usos da razão tem a primazia? Se a razão prática não pudesse admitir nem pensar nada mais do que aquilo que a razão teórica põe ao seu dispor, o primado seria desta última.
Contudo, a razão prática possui determinados princípios a priori aos quais estão inseparavelmente unidas as afirmações da liberdade, da imortalidade e de Deus, que ultrapassam todo o poder da razão especulativa ou teórica. Kant subordina o interesse da razão teórica ao interesse da razão prática, ou seja, não limita a razão àquilo que se pode encontrar na experiência. Se a razão prática estivesse empiricamente condicionada, como é o caso da razão teórica, então não faria sentido pretender a primazia. Mas, como sabemos, a razão prática pode ser pura, ao contrário da razão teórica, cuja actividade não pode desconhecer a referência à experiência. A razão pura prática postula a existência de Deus, a liberdade e a imortalidade da Alma, porque sem liberdade a lei moral (lei da razão pura prática) não teria fundamento e porque sem a imortalidade e Deus, o seu objecto supremo (Soberano Bem) seria inconcebível.
Como a razão teórica não pode ir para lá da experiência, ela também não pode pôr em causa (nem demonstrar) as conclusões a que a razão pura prática chega. Teríamos uma contradição da razão consigo mesma, ou seja, um conflito entre o seu uso teórico e o seu uso prático. Assim, a unidade dos dois usos da razão estabelece-se mediante a subordinação da razão teórica à razão prática.
Com efeito, o interesse da razão pura enquanto tal é metafísico ou absoluto e só o uso prático satisfaz esse desejo. Assim, os postulados da razão prática não são novos conhecimentos, mas uma ampliação da razão que se revela como não estando condicionada, na sua totalidade, pela experiência.»
Eusebi Colomer, El pensamiento alemán de Kant à Heidegger, vol I, p. 225

TERCEIRA PARTE

O problema da ligação entre liberdade e natureza

PRÓLOGO

A reflexão sobre as condições de possibilidade do conhecimento científico e da acção moral, que percorremos privilegiando duas grandes obras — a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática — acabou por revelar que entre o plano da natureza (o plano fenoménico submetido a leis necessárias) e o plano da liberdade (o plano numénico ou supra--sensível, independente das leis naturais) há um fosso, uma separação radical. Como já foi dito, estes dois planos da realidade — o mundo sensível e o mundo supra-sensível ou inteligível — têm cada qual uma legislação própria: o mundo sensível ou natural é regido por leis necessárias ou mecânicas, é o reino da necessidade, não havendo lugar para a liberdade; o mundo supra sensível rege-se pela lei moral, que é uma lei de liberdade. A dicotomia entre estes dois planos, submetidos a leis tão diferentes parece condenar-nos a não podermos pensar a sua unidade, instalando-se o dualismo fenómeno-númeno, natureza - liberdade, sensível - inteligível.
Contudo, em uma terceira grande obra intitulada Crítica da Faculdade de Julgar, Kant procura um meio de conciliar o reino natural que o nosso entendimento conhece (e produz quanto à sua forma) e o reino da liberdade do qual participamos enquanto seres racionais destinados ao aperfeiçoamento moral. É imperioso encontrar um acordo ou uma comunicação entre estas duas dimensões até porque, como já sabemos, a distinção fenómeno-númeno corresponde à diferença entre dois modos de ser do homem. Se, dada a diferente legislação que os rege não for possível uma transição ou uma ponte, teremos o homem dividido, cindido e não como totalidade concreta ou indivíduo.
Trata-se, portanto, de pensar como é possível falar de comunicação entre o natural e o espiritual, o sensível e o inteligível. Falar de comunicação implica admitir que um desses planos exerça alguma influência sobre o outro.
Já sabemos pelo que foi dito acerca das capacidades do nosso conhecimento que não há passagem possível do mundo sensível ao mundo inteligível. A metafísica tradicional sempre pretendeu efectuar a passagem demonstrativa do condicionado ao incondicionado entendendo este como fundamento supremo. Tal pretensão revelou-se ilegítima e extravagante. Assim sendo, a comunicação entre estas duas dimensões do real deve ser entendida como "passagem" do mundo inteligível ao sensível. Kant pensa esta "passagem" como designando uma "influência". Uma vez que o mundo dos númenos transcende o plano fenoménico este não pode ter nenhuma influência sobre aquele. Contudo, a outra alternativa impõe-se: o mundo supra-sensível da liberdade deve exercer a sua influência no mundo natural. Como diz Kant,
«O conceito de liberdade deve tornar efectivo no mundo sensível o fim exigido pelas suas leis e a natureza deve portanto poder ser pensada de tal modo que a legalidade da sua forma concorde pelo menos com a possibilidade dos fins a efectivar nele segundo a lei da liberdade.»
[C.F. J, Oeuvres, II, p. 929]

Kant afirma ser necessário pensar a possibilidade de uma influência da liberdade no mundo sensível porque, caso contrário, não seria possível pensar que a lei moral (mundo da liberdade) pudesse realizar-se nas acções (efeitos sensíveis da vontade do homem enquanto ser racional e, portanto, facto do mundo sensível). A natureza deve poder pensar-se de tal modo que, embora seguindo as suas leis próprias (leis necessárias) concorde com a possibilidade de nela levar a cabo fins de acordo com a lei da liberdade (lei moral): fins morais.
A natureza deverá ser pensada como se ela fosse compatível com a realização de certos fins projectados por uma vontade livre.
Este pensamento é obra daquilo a que Kant chama "faculdade de julgar".
Nos seus juízos sobre a natureza ela concebe o plano natural como se fosse uma dimensão que, embora sensível, realizasse também finalidades de ordem inteligível.
Assim, é num princípio a priori da faculdade de julgar — a noção de finalidade" — que Kant encontra o meio de ligar, melhor dizendo, de tornar pensável a ligação de planos separados como o sensível e o inteligível.
Antes de examinar mais de perto corno é pensada essa unidade temos de caracterizar o que nesta terceira "Crítica" Kant entende por "faculdade de julgar". O esclarecimento impõe-se porque como já vimos o entendimento foi definido como faculdade que produz juízos — que julga — e sabemos que ele actua no plano natural impondo leis aos fenómenos e nada mais. Assim, se Kant atribui à "faculdade de julgar" o poder, não de dar leis aos fenómenos, mas de pensar a ligação entre o fenoménico e o numénico, é evidente que não está a identificar a "faculdade de julgar" com o entendimento. Por outras palavras, está a referir-se a uma outra modalidade da faculdade de julgar, a uma outra forma de "julgar" a natureza que não a do entendimento.
Na Crítica da Faculdade de Julgar Kant introduz uma novidade face à doutrina do juízo formulada na Crítica da Razão Pura.
Distingue dois tipos de juízos:
— Juízo determinante
— Juízo reflexionante
Segundo Kant, julgar ou formular juízos é um acto que consiste em subsumir (colocar) o particular sob o universal e pode assumir duas formas.
Se o universal é previamente dado (sob a forma de conceito, regra, lei, princípio) e o aplicarmos a um dado particular, temos aquilo a que Kant chama juízo determinante: o particular será conhecido como concretização do universal. Em termos gerais, o juízo determinante é aquele que nos faz conhecer — é um juízo de conhecimento ou objectivo — porque prescreve aos fenómenos, aos dados particulares, conceitos a priori. Estes conceitos que são prévios à experiência determinam os dados empíricos, permitem conhecê-los ou objectivá-los'21.
Se só o particular é dado e a faculdade de julgar deve procurar o universal temos um juízo reflexionante. Com efeito, é exigido um esforço de reflexão "ascendente" quando as coisas particulares nos aparecem sem que tenhamos já em nosso poder conceitos, leis ou princípios que lhes aplicaríamos. O juízo reflexionante não é científico, não explica ou faz conhecer os fenómenos mas simplesmente nos permite compreender. Compreender o quê?
(1)    Ausente da tábua das categorias do entendimento.
(2)    O juízo determinante embora não científico verifica-se também no plano moral: as acções particulares são avaliadas — determina-se como podem ser consideradas moralmente válidas — por referência a uma norma universal que é a lei moral.

A unidade do mundo sensível e do mundo supra-sensível. Há coisas que é necessário compreender mas que não podemos conhecer, determinar. Qual o instrumento chave para esta compreensão? O conceito ou o princípio de finalidade. Este conceito, uma vez que não faz parte das categorias do entendimento não terá um uso constitutivo (cognitivo) mas sim um uso reflexivo, permitir-nos-á, segundo Kant, dar sentido, compreender. O princípio de finalidade é uma regra que a faculdade de julgar dá a si mesma (e não à natureza) para poder reflectir sobre a natureza e tornar compreensível a ligação (não objectiva mas exigida pelo sujeito) entre o mundo natural — que em si mesmo não age segundo fins mas se comporta mecanicamente — e o mundo moral ou da liberdade (que dá a si mesma fins práticos ou morais).
Vê-se assim claramente que a "faculdade de julgar" de que trataremos é aquela que produz juízos reflexionantes. Estes são formas de representar a natureza como se nela houvesse alguma finalidade e podem ser de dois tipos: estético e teleológico.
Antes de explicitarmos o que define cada um podemos adiantar sucintamente algumas características.
O juízo estético — A finalidade de um dado objecto natural'" pode ser representada como acordo ou harmonia da forma do objecto com as nossas faculdades de conhecimento mas sem que a forma do objecto seja referida a qualquer conceito previamente dado que o determinaria ou explicaria. Temos um juízo estético quando a representação pura e simples da forma do objecto provoca um sentimento de prazer que se pretende universal. O objecto de um juízo estético é a beleza (ou o belo).
O juízo teleológico — A finalidade de um dado objecto natural pode ser representada como acordo ou concordância da sua forma (organização) com a possibilidade do próprio objecto. Mediante este juízo julgamos que um certo objecto cumpre uma finalidade da Natureza não sendo simplesmente o fundamento de um sentimento de prazer.
Efectuada esta sumária distinção tentaremos desenvolver o significado de cada um des  tes juízos.
Relembra-se, contudo, o que está em causa: mostrar que o conceito ou a ideia de finalidade da natureza é o elo de ligação entre a liberdade (mundo supra-sensível) e a natureza (mundo fenoménico) porque nos permitirá pensar esta última como não sendo um reino pura e simplesmente mecânico.
Ao vermos como tal ideia é legítima compreenderemos a preponderância da moral na filosofia kantiana.
Só falaremos da beleza natural e não da obra de arte.


1.O JUÍZO ESTÉTICO

Na reflexão sobre o juízo estético há uma tese que se tratará de demonstrar:
A experiência estética — do belo — permite estabelecer uma comunicação entre o mundo fenoménico ou natural (que não é um simples mecanismo mas também pode ser pensado como objecto de uma experiência estética) e o mundo numénico ou supra--sensível, que é o objecto de uma experiência moral'".
Há um plano da existência humana em que, para o homem, não se trata nem de conhecer cientificamente nem de querer agir moralmente mas, pura e simplesmente, de sentir. Este plano é o da experiência da beleza, o domínio da estética. O sentimento da beleza, quer de uma obra artística quer da natureza, é expresso num juízo a que Kant dá o nome de juízo estético ou juízo de gosto.
O juízo estético é a forma de comunicarmos em palavras e conceitos um sentimento: o sentimento da beleza. O juízo estético exprime o que acontece quando temos uma experiência estética, i. e., traduz um sentimento que experimentamos ou vivemos ao contemplar um objecto, por exemplo, uma rosa. Dizer "Esta rosa é bela" é traduzir num juízo um sentimento de prazer que acompanha essa contemplação.
Se a experiência da beleza é um sentimento de prazer isso significa que a beleza não é, apesar de poder parecer o contrário, uma propriedade objectiva das coisas e que o juízo estético é reflexionante. Será essa a primeira das suas características a ser esclarecida.
l. l. O juízo estético é um juízo reflexionante
Quando eu digo que algo é belo estou a transmitir uma satisfação, um sentimento de prazer que se dá na contemplação de um objecto. À primeira vista ao atribuir a esse objecto o predicado "belo" parece que estou a referir-me à beleza como propriedade que "está" nesse objecto. Contudo, segundo Kant, dizer que algo é belo é traduzir um sentimento, é expressar algo que acontece em mini. A beleza é um sentimento de prazer, algo que se dá na consciência do sujeito e não algo que seja propriedade do objecto. O sentimento da beleza começa com a experiência do objecto mas, como veremos, não deriva dela.
Assim, o juízo estético é reflexionante porque descreve aquilo que o sujeito sente. A beleza não é uma coisa nem uma propriedade das coisas. É um sentimento que é vivido no interior do sujeito e do qual este tem consciência.
Como se traduz esse sentimento? Dizendo de uma forma não muito correcta que o objecto contemplado é belo.
Em suma, o juízo estético é a forma aparentemente objectiva de descrever algo que se passa em mim. Caracterizada a beleza como sentimento de prazer trataremos agora de saber que espécie de prazer se exprime no juízo estético, ou seja, quais as condições que tornam possível a experiência estética.

1.2. O juízo estético é a expressão de um sentimento de prazer puro e desinteressado
Quando eu julgo um objecto como belo, duas condições são necessárias:
— Não reduzir o objecto ao estatuto de meio que satisfaz determinado fim.
— Não estar condicionado por nenhum desejo de posse, não sentir nenhuma carência.
O juízo de gosto, o sentimento do belo, é exterior a toda e qualquer espécie de desejo, é desinteressado. Com efeito, ao julgar algo como belo eu considero determinada coisa pura e simplesmente pondo de parte toda e qualquer inclinação ou interesse. O meu juízo (por exemplo, "Este rio é belo") não pode depender de qualquer desejo nem reduz a coisa ao facto de ser desejada. Deste modo, o sentimento do belo nada tem a ver com a faculdade de desejar, ou vontade.
O juízo de gosto que incide no belo, exprimindo a sua experiência, comunica uma satisfação desinteressada e pura. Para Kant dizer que algo é belo é diferente de dizer que é agradável.
Ao julgar um objecto como agradável está presente no sujeito um desejo de posse da coisa que preencherá um certo estado de carência. Dizer que algo é agradável não me pode, por conseguinte, tornar indiferente à existência da coisa, pois é esta que torna possível uma apropriação ou posse, fonte de prazer sensorial ou material. Como o interesse consiste "na satisfação que ligamos à representação da existência de um objecto" (C. F. J., § 2, p. 50), é evidente que o juízo do agradável só pode ser interessado. A coisa é apreciada não na sua livre manifestação mas enquanto capaz de corresponder a um desejo, a uma carência daquele que a aprecia. Ela é considerada não pura e simplesmente, sem qualquer condicionamento, mas enquanto me agrada ou é meio para a realização de uma inclinação ou desejo sensível. O olhar que eu lanço sobre ela não é puro ou contemplativo; é, passe a expressão, um "olhar de caçador", dominado, condicionado pelo desejo de posse. Este impede a pureza e a simplicidade da manifestação das coisas, instrumentalizando a sua existência.
O desejo de posse do objecto tem como correlato a dependência do sujeito face às suas inclinações. Reduzindo a coisa a objecto de desejo, o sujeito veda o acesso a uma satisfação livre. Com efeito, o juízo sofre o constrangimento de um desejo sensorial, de um interesse pelo objecto. O interesse nele implícito,
«Não deixa de modo algum que o juízo sobre o objecto seja livre.»
(C. F. J., A. B., §5, p. 55)
Quando há contemplação pura, estética, o sujeito não tem nada a ligá-lo, a prendê-lo, à existência do objecto, à sua materialidade. A satisfação é unicamente determinada pela representação do objecto, pela sua pura forma. A concepção kantiana do sentimento estético, como puro e desinteressado, faz deste sentimento algo de puramente formal. O limite, pode-se dizer que o sentimento estético tem de "pôr entre parênteses" o sensível naquilo que este tem de empírico ou material. Assim na pintura é a apreensão da forma dos objectos (o desenho e não a cor), aquilo que me deve satisfazer para que o sentimento seja puro ou estético; na música é a composição dos sons, e não os sons em si mesmos, que constitui o elemento propriamente estético.

O interesse está ligado àquilo que é agradável e àquilo que é bom (quer o bom relativo ou útil, que só o é a título de meio para um fim, quer o bom em si ou mais propriamente aquilo a que chamamos bem).
O agradável e o bom tem uma relação com a faculdade de desejar.
Consideremos um palácio construído unicamente com materiais preciosos e construído à custa de imenso trabalho de muitos homens. O que está em causa é saber se é belo.
Há pessoas que poderão discutir sobre a utilidade ou a inutilidade de tal obra.
Poderão uns dizer que ele é uma ostentação de luxo, que o trabalho e o dinheiro que exigiu poderia ter sido empregue de uma forma bem mais útil na construção de estabelecimentos para a colectividade, tais como escolas, hospitais, laboratórios, ou habitações mais confortáveis e funcionais para o bem-estar dos mais desfavorecidos.
Outros poderão dizer que o palácio tem um interesse indiscutível quer pelo conforto que oferece aos seus habitantes quer pela sua boa exposição ao sol.
Segundo Kant, para nos pronunciarmos sobre a qualidade estética desse palácio, para julgarmos se é belo ou não, devemos contemplá-lo abstraindo da consideração da sua possível utilidade, inutilidade e também da sua moralidade. O juízo estético é radicalmente diferente de qualquer juízo ligado a um interesse.
O juízo estético implica que o objecto a que chamamos belo cause satisfação independentemente de qualquer desejo ou apetite. Um exemplo: suponhamos que olho para um quadro onde está pintado um fruto e digo que é belo. Se por isso quero dizer que gostaria de comer o fruto, caso ele fosse real, referindo-me assim a um apetite, a um desejo, o meu juízo não será, em termos técnicos, um juízo estético: estaria a usar indevidamente a palavra "Belo".
Apesar de ser subjectivo, i. e., de traduzir o que acontece num determinado sujeito ou indivíduo, Kant afirma que, embora não sendo objectivo ou universal de facto, o juízo estético tem direito à universalidade (é subjectivamente universal).
Como é isso possível? O que torna legítima essa reivindicação?
É deste problema que trataremos a seguir.

' Há um interesse na realização do bem moral, ou seja, em agir pura e simplesmente por dever, embora a vontade boa não encontre o seu princípio de determinação no interesse de ordem empírica. A acção que cumpre a lei moral por ela mesma é algo que estamos obrigados a querer pois só assim seremos racionais. Não há, por conseguinte, desinteresse, embora se trate de um interesse moral ou ideal.

1.3. O juízo estético é subjectivamente universal
O juízo científico constitui o objecto, a objectividade, como um conjunto de relações necessárias e diz-nos o que é o objecto em relação a nós.
No plano do juízo moral o objecto é aquilo que resulta das minhas decisões, ou seja, é uma acção cujo princípio é o cumprimento da lei moral ou a determinação segundo princípios racionais.
Em ambos os planos é o sujeito que constitui o objecto. No plano do juízo estético o sujeito não determina ou constitui o objecto mas contempla-o, ou seja, acolhe liberto de qualquer interesse a sua manifestação.
Enquanto cientista determino o que o objecto (o fenómeno) é; enquanto ser moral determino o que o objecto deve ser, mais propriamente como devo agir; enquanto sujeito estético acolho a livre manifestação do objecto e, apesar de parecer o contrário, digo simplesmente o que sinto, o que se passa em mim.
Não produzindo qualquer determinação objectiva, o juízo de gosto é subjectivo. Contudo, este juízo é sui generis, pretende ser universalmente comunicável. O juízo estético é subjectivamente universal. Por outras palavras, quando eu digo que algo é belo eu pretendo traduzir um sentimento que se verifica em mim mas que também se deve verificar nos outros sujeitos. O que torna legítima esta pretensão? O que me dá direito a falar não só em nome de mim mesmo, mas em nome dos outros?
Se eu digo que um certo objecto é belo eu, implicitamente, afirmo que ele é, de direito, belo para todos. Como o meu juízo não se baseia em inclinações ou interesses (por mais elevados que sejam) que me são peculiares (unicamente meus) eu posso julgar-me no direito de que os outros reconheçam também a beleza do objecto, i. e., experimentem o tipo de satisfação que eu sinto. Neste sentido, o juízo estético é subjectivamente universal. Livre de qualquer interesse ou particularismo do sujeito que julga e sem se demonstrar aos outros que o objecto é belo, o juízo estético tem direito à validade universal.
Por isso eu julgo ter razão para atribuir aos outros uma satisfação semelhante àquela que eu próprio experimento. Com efeito, a satisfação estética ou pura, não se baseia na gratificação, no cumprimento das minhas inclinações ou interesses. Assim eu falo do objecto como se a beleza fosse uma sua característica objectiva.

1.4. O juízo estético é um juízo em que se revela a harmonia original entre as faculdades de conhecimento
Kant caracteriza a experiência estética como uma livre harmonia que o sujeito sente no interior de si mesmo entre as faculdades de conhecimento: sensibilidade, imaginação e entendimento. Sabemos que para haver conhecimento a sensibilidade e a imaginação submetiam a sua "actuação" às regras, conceitos e princípios do entendimento, a "faculdade dos conhecimentos". Mediante os esquemas criados pela imaginação transcendental as categorias ou conceitos puros do entendimento podiam aplicar-se a algo que parecia radicalmente heterogéneo: as intuições empíricas ou sensações. Os esquemas da imaginação são sempre esquemas das categorias permitindo a submissão dos dados sensíveis ou particulares ao conceito, i. e., ao universal.
Verificámos, quando se tratava de conhecer, que os dados sensíveis captados pela sensibilidade eram submetidos aos conceitos do entendimento para que se pudesse constituir um conhecimento. Assim, o entendimento explicava mediante conceitos aquilo que a sensibilidade recebia.
Na experiência estética não se verifica a submissão dos dados sensíveis a conceitos ou regras do entendimento, ou seja, não há uma submissão da sensibilidade ao entendimento. Com efeito, ao falarmos de dados sensíveis em termos estéticos estamos a falar de sentimentos de prazer e os sentimentos não se explicam, não se demonstram.
O que acontece então? Acontece que a sensibilidade vive um sentimento de prazer na contemplação de determinado objecto e o entendimento em vez de explicar ou de demonstrar esse sentimento vai simplesmente traduzi-lo num juízo utilizando um conceito que é o conceito de belo.
Exemplo: Contemplo uma paisagem e sinto um prazer puro e desinteressado nessa contemplação. O que faz o entendimento? Traduz essa experiência formulando um juízo: "Esta paisagem é bela."
O conceito de beleza unicamente exprime um sentimento mas não o explica porque se isso acontecesse a experiência já não seria estética mas de conhecimento.
Em suma, sendo um sentimento puro a experiência da beleza não é conhecimento de qualquer objecto, e então, não o submetendo a conceitos, verifica-se que sensibilidade e entendimento estão em harmonia, estão de acordo, não havendo submissão de uma faculdade à outra. Isto significa que há um livre jogo entre elas, um acordo incompreensível porque indemonstrável. /
Dizer "Esta rosa é bela" é muito diferente de dizer, esta rosa é bela por isto e por aquilo. Há assim uma harmonia entre sensibilidade e entendimento, um livre jogo porque a experiência sensível não é submetida a conceitos, isto é, a demonstrações. Não há nenhuma regra preestabelecida sobre o que é a beleza, não há nenhum conceito sobre o que é belo que utilizemos para falar da contemplação dos objectos. Assim, não estando a sensibilidade submetida a regras fixas ou imutáveis, dá-se um livre jogo entre as faculdades, uma harmonia original.
Deste modo, na experiência da beleza (estética) as faculdades que contribuem para o conhecimento estão envolvidos mas não produzem conhecimentos,’. e., não funcionam da forma que é habitual. As faculdades de conhecimento, "alimentadas pela imaginação", relacionam-se livremente entre si, não visam qualquer interesse ou fim determinado. É nessa liberdade que reside o prazer.
Não sendo um juízo de conhecimento, o juízo de gosto faz contudo apelo às faculdades do conhecimento. Mas como a sua universalidade não é conceptual, como exprime uma satisfação sem conceito, não definível em termos objectivos, a faculdade de julgar estética não recebe do entendimento nenhum conceito determinado que aplicaria à diversidade intuitiva reunida pela imaginação. Com efeito, se assim fosse, o juízo deixaria de ser estético e tornar-se-ia cognitivo ou determinante.
Logo
«O estado de espírito nesta representação [no sentimento de prazer estético] deve ser o sentimento do livre jogo das faculdades representativas numa representação geral dada em vista de um conhecimento em geral» (C. F. J., AN, § 9, p. 61).

O estado de espírito próprio do prazer estético é o livre jogo das faculdades do sujeito, i. e., a independência face a qualquer desejo, interesse ou finalidade, que transformaria as coisas em meios, impedindo uma relação original com o homem. No entanto, este livre jogo, esta harmonia do sujeito consigo mesmo, esta satisfação desinteressada (não condicionada pelos nossos desejos ou apetites e independente de qualquer obrigatoriedade moral), contém em si uma finalidade. Como o texto diz, ela é "em vista de um conhecimento em geral".
Se ao jogo das faculdades cognitivas no juízo estético nenhum conceito preside, se esse jogo é livre em relação a todo e qualquer conceito, temos de concluir que nenhum conhecimento determinado, objectivo, resulta dessa conformidade espontânea, sem porquê, da imaginação e do entendimento. Portanto, a finalidade que a expressão "em vista de" indica não é uma finalidade com fim mas uma finalidade sem fim, uma simples forma de finalidade. A liberdade lúdica, o livre jogo das faculdades, não representa em relação ao conhecimento senão uma finalidade indeterminada. Daí ser simplesmente "em vista do conhecimento em geral". A finalidade do sentimento de prazer estético, isto é, do livre jogo das facilidades, não é senão a conservação dessa mesma actividade livre de todo e qualquer desejo, interesse ou fim. O prazer estético consiste na liberdade do jogo das faculdades que visa perpetuar (daí ser finalidade sem fim) a actividade das faculdades de conhecer, não a restringindo portanto a nenhum conceito ou lei determinados.

1.5. O juízo estético exprime a ideia de que os objectos naturais cumprem uma "finalidade sem fim"
Ao dizer, por exemplo, "Esta flor é bela" eu penso esse objecto como se ele cumprisse uma finalidade, como se existisse para me dar prazer. Como o juízo estético tem de ser expressão de um prazer puro ou desinteressado, que não submete o objecto a nenhum desejo, interesse ou fim, essa finalidade só pode ser uma "finalidade sem fim".
Tentemos exemplificar esta ideia de uma "finalidade sem fim" presente na experiência estética: Suponhamos que eu olho para uma flor, por exemplo, uma rosa. Posso ter 0    sentimento de que a sua forma realiza uma finalidade. Ao mesmo tempo não represento
ou não exprimo que finalidade definida é realizada por essa flor. Se alguém me perguntasse que tipo de finalidade a rosa cumpre eu não saberia dar uma ideia clara. Não concebemos· (não representamos segundo conceitos) nenhuma finalidade. E contudo, em certo sentido,
experimentamos ou sentimos, sem conceitos (sem a conseguir demonstrar) que a rosa,dada a harmónica organização dos seus elementos, realiza uma finalidade: causa-me prazer. Há
uma consciência (um sentimento) de finalidade do objecto mas não há nenhum conceito· (nenhuma demonstração) do fim que é realizado. Daí dizer-se que a finalidade é sem fim.
Se o nosso juízo diz que a flor é bela, não há nenhuma demonstração que diga claramente o
fim que esse objecto realiza por ser belo. Assim a sua beleza é livre e o nosso juízo é puro, ou seja, a nossa satisfação é pura, liberta de qualquer elemento conceptual ou sensorial.
O prazer estético liga-se à forma do objecto porque a manifestação deste é formalmente final. Se a finalidade do jogo das faculdades é ser actividade indefinida (daí o jogo ser finalidade sem fim), o dar-se, a manifestação do objecto não tem outra finalidade senão mostrar-se livremente, sem ser meio para um fim, aparecer puro ao olhar contemplativo. A finalidade do jogo é ser uma abertura contemplativa e acolhedora da manifestação da coisa naquilo que ela é, na sua pureza, enquanto, correlativamente, a manifestação gratuita da coisa visa, tem como finalidade, unicamente, essa sua oferta a uma atitude que a põe ao abrigo de toda a inclinação sensível e de todo e qualquer conceito, em suma, de qualquer fim ou interesse.
O belo artístico que não tematizámos porque para os efeitos em vista bastava o belo natural coloca-nos perante uma relação homem-natureza análoga à verificada no juízo de gosto. Reencontramos a atitude de acolhimento, a gratuitidade e a disponibilidade, a beleza livre. No entanto, no domínio artístico, a comunhão homem-natureza é sem dúvida mais dinâmica, não há uma simples fruição do belo, mas a sua produção, a sua criação. Existe, para utilizar palavras de Heidegger, grande filósofo alemão do século xx, a construção de uma morada que a acolhe, a coisa, a natureza, no seu dar-se ao homem, permitindo a sua livre eclosão. A arte será assim a resposta criadora (e não o simples olhar contemplativo, puro e desinteressado) ao apelo de uma natureza que, passe a expressão, escolhe o homem como lugar do seu desvelamento, da sua revelação livre e gratuita.
Ao falarmos de arte, de produção artística, temos de nos referir a uma regra, a um fim que determina a produção artística, para que a obra artística possa ser bela ela tem de ser livre de qualquer constrangimento conceptual. Para que a arte seja bela, a regra que a orienta não deve transparecer, ou seja, não devem aflorar indícios de que o "artista tinha a regra sob os olhos e que esta impôs cadeias às faculdades da sua alma" (C. F. J., § 46, p. 138). A arte é bela porque no talento criador do génio a regra não entrava a originalidade e a espontaneidade. A criatividade do génio exprime, na obra produzida, a abertura de um livre horizonte de manifestação para uma natureza que lhe dispensou os seus maravilhosos dons fazendo dele seu favorito. O génio corresponde a este dom ao produzir uma obra não exprimível "numa fórmula para servir de preceito", isto é, uma obra original, alheia ao espírito de imitação, em cujo acto de realização o homem age enquanto natureza (criatividade exuberante), de uma forma tão espontânea que "ele não pode descrever ou expor cientificamente como realiza o seu produto".


O BELO E O SUBLIME

O belo e o sublime têm algo em comum: ambos causam prazer e o juízo de que algo é sublime não pressupõe nenhum conceito, ou seja, tal como o juízo de que algo é belo, não é algo que se demonstre. Mas ao mesmo tempo há consideráveis diferenças: a experiência da beleza, como vimos, tem a ver com a pura forma do objecto e a forma implica limitação. A experiência do sublime, ao contrário, está associada com a ausência de forma, no sentido de ausência de limitação, embora esta seja associada com a ideia de totalidade. Por exemplo, a esmagadora grandeza do oceano tempestuoso é sentida como ilimitada embora esta ausência de limites seja representada como uma totalidade. Kant associa a beleza com o entendimento e o sublime com a razão. A experiência da beleza, como já vimos, não depende de nenhuma demonstração, de nenhum conceito determinado.
Contudo, envolve um livre jogo de duas faculdades: a imaginação e o entendimento. O belo como algo de formalmente limitado é sentido como adequado à imaginação e a imaginação, a respeito de uma determinada intuição, é dita estar de acordo com o entendimento, a faculdade dos conceitos.
O sublime, contudo, "violenta" a imaginação, ultrapassa-a. E representado então, dada a sua indeterminação, como estando de acordo com a razão, a faculdade que produz as Ideias indeterminadas de totalidade. O sublime, como envolve ausência de limites e é associado com a ideia de totalidade indeterminada, pode ser encarado como "exibição" de uma ideia indefinida da razão.
Uma outra diferença é a de que, enquanto o prazer produzido pela beleza pode ser descrito como prazer positivo que se prolonga na contemplação calma, o sublime, maravilha e causa temor mais do que prazer positivo. É a manifestação de uma poderosa força que faz estremecer quem a contempla. O sublime, de modo ainda mais nítido do que o belo, é um sentimento: a sublimidade pertence mais aos nossos sentimentos do que aos objectos. O sujeito é como que incitado a abandonar o plano sensível ocupando-se de ideias.
Adaptado de F. Coppleston, "From Wolff to Kant", in History of Philosophy.


1.6. A experiência estética é análoga à experiência moral (o belo é o símbolo da moralidade)
Já dissemos na introdução a esta obra, Crítica da Faculdade de Julgar, que as duas obras anteriores tinham estabelecido uma espécie de fosso entre o domínio da Natureza ou realidade sensível (fenoménica) e o domínio da liberdade ou da moralidade, ou seja, o plano da realidade supra-sensível ou numénica. Nem a Razão pura teórica nem a Razão pura prática se revelaram capazes de estabelecer uma ligação entre estas duas dimensões da realidade. Parece assim que temos a realidade (e o homem) cindida, "cortada" em duas dimensões incomunicáveis. Ora, para Kant, a moral deve ter alguma influência no mundo da Natureza, melhor dizendo, a moralidade deve estar de algum modo presente no mundo sensível: a Natureza não deve ser a negação absoluta da liberdade moral. Pretende-se, portanto, uma certa moralização ou espiritualização da realidade sensível ou material. De negação da liberdade moral, a natureza, enquanto conjunto de objectos que podem ser belos, ;'. e., produzir prazer estético ou puro, desinteressado, transforma-se em símbolo da moralidade.
O que é que Kant entende por símbolo? Ilustremos com um exemplo do próprio Kant: um Estado democrático pode ser representado como um corpo vivo (um organismo) se é governado por leis que se baseiam na vontade do povo e pode ser representado por uma máquina se é governado por uma vontade absoluta e autocrática ou ditatorial. A representação do Estado é, em ambos os casos, simbólica.
O Estado democrático não funciona, de facto, como um corpo vivo ou organismo nem o Estado despótico é uma máquina. Há, contudo, uma analogia entre o modo como funciona o corpo vivo e o Estado democrático e o modo como funciona a máquina e o Estado autoritário. Assim, Kant baseia a ideia de simbolismo numa analogia. Surge então a questão que nos interessa: que pontos de analogia (ou semelhança) há entre a experiência estética e a experiência moral, entre a Beleza, o sublime e o bem moral, que justifiquem que olhemos para a experiência da beleza e do sublime como um símbolo da experiência moral?
A experiência estética é uma experiência desinteressada (o que não quer dizer, obviamente, aborrecida). A pureza do sentimento que incide sobre a pura forma do objecto alheando-se da sua materialidade é a característica fundamental da vivência estética. Isto tem analogias com a experiência moral. Com efeito, a acção propriamente moral consiste no puro e simples respeito pela lei moral. O sentimento de respeito pela lei moral (pela autonomia e dignidade do homem que essa lei exige) é um sentimento puro, não patológico, i. e., não condicionado por interesses'", desejos, inclinações sensíveis, o que o torna análogo ao sentimento estético, pura contemplação que abstrai de qualquer interesse ou inclinação (sensorial) pelo objecto. No plano da moralidade o que era decisivo era a forma da acção e não o seu conteúdo; no plano estético o que conta é a forma do objecto contemplado.
Falámos anteriormente da atitude moral como atitude que tem um interesse elevado: a dignidade e absoluta autonomia do homem. Este interesse não precede contudo a acção moral mas é posto por esta.

A experiência estética do sublime (da natureza ou da arte) põe o homem em íntimo contacto com a sua dimensão supra-sensível ou moral. Mais ainda do que o belo, o sublime faz-nos reflectir sobre o nosso próprio destino convencendo-nos de que ele não se limita à experiência sensível, à dimensão fenoménica. A experiência do belo e do sublime, a experiência estética, é o símbolo da moralidade. Com efeito, "o belo prepara-nos para amar qualquer coisa, mesmo a natureza, de uma maneira desinteressada; o sublime (a experiência deste) ensina-nos a estimá-la, mesmo contra o nosso próprio interesse". A experiência estética encaminha-nos, simbolicamente, para o bem moral. Prepara-nos para a vivência moral ao libertar-nos do interesse sensível ou empírico e ao dar-nos a noção de que a Natureza não se reduz ao plano do mecanicismo (da causalidade física necessária) mas que nela existe uma finalidade em relação ao homem como ser moral. A experiência do belo e do sublime, fazendo-nos reflectir sobre a natureza, estabelece uma ponte, uma mediação simbólica entre a natureza e o mundo supra-sensível ou inteligível, porque nos faz ultrapassar a materialidade do mundo sensível e descobrir nele uma certa espiritualidade, ou seja, uma adequação da natureza à nossa dimensão supra-sensível. E como se a natureza fosse a manifestação sensível de algo essencialmente espiritual ou supra-sensível. Mediante a experiência estética, os objectos naturais são intuídos na sua forma pura: são assim despojados da sua materialidade tornando-se como que espirituais dentro de nós. É isto o que acontece na contemplação da natureza. Na produção artística, por seu lado, o espiritual, o inteligível, torna-se imanente ao sensível. Assim, na experiência estética há uma conciliação do homem com a natureza, uma harmonia da sua dimensão espiritual com a sua dimensão sensível.

CONCLUSÕES SOBRE A ESTÉTICA KANTIANA: A EXPERIÊNCIA DA BELEZA COMO ÍMBOLO DA MORALIDADE.

Os objectos da experiência estética.
Para Kant os objectos capazes de suscitar experiências estéticas – e que por isso recebem o nome de objectos estéticos – são de dois tipos:
a) Objectos artísticos – são criações humanas, objectos artificiais, que, produzidos pela actividade do artista, são capazes de despertar emoções e sentimentos que os avaliem como belos, horríveis ou sublimes. Exemplos: uma pintura, uma sinfonia, uma peça teatral.
b)  Objectos naturais – são produtos da natureza e não criações humanas; descobrimo-los e são capazes de despertar emoções e sentimentos que os avaliem como belos, horríveis ou sublimes.
Assim, quer a natureza quer a arte podem proporcionar prazer estético.
Na experiência estética dá-se assim a relação entre um sujeito que observa e contempla e um objecto – natural ou artístico. Ora, é precisamente na atitude do observador que reside, segundo Kant, o segredo, o carácter especial da experiência estética. Quer isto dizer que só há prazer ou satisfação estéticos se nos relacionarmos com os objectos naturais ou artísticos de uma determinada forma, se os observarmos e apreciarmos de um certo modo. Só uma determinada atitude torna possível o prazer característico da experiência estética. Essa atitude tem o nome de atitude estética e, analisando-a, iremos esclarecer quais as características próprias da experiência estética.

A atitude estética é uma atitude que não depende de interesses nem de necessidades

A experiência estética só é possível se na relação com os objectos adoptarmos uma atitude desinteressada. Em que consiste esta atitude? Consiste numa relação que não se interessa pela utilidade do objecto observado, não o transforma em meio ao serviço de um fim. Na atitude estética, apreciamos o objecto por si mesmo afastando quaisquer considerações relativas ao proveito que nós ou alguém teríamos em possuí-lo, aos valores morais que promove ou não, e pondo “fora de circuito” a vontade de ampliar conhecimentos.
Trataremos agora de aprofundar o que foi sublinhado: a atitude estética — a forma estética de relação com os objectos naturais e artísticos.

a) Não é uma atitude prática ou utilitária.

A atitude estética é alheia a qualquer consideração sobre a utilidade do objecto, não é determinada pelo desejo de posse, ou pelo eventual valor monetário ou comercial do objecto contemplado. A contemplação é, no caso da atitude estética, um fim em si mesma. A atitude utilitária impede que nos “aproximemos” de forma pura e desinteressada das produções artísticas e naturais, prende-nos aos nossos interesses e inclinações materiais ou sensíveis, isto é, não permite uma satisfação livre.

Podemos dar como exemplo o caso do agente imobiliário que, quando observa as paisagens do Gerês, não consegue evitar pensar no seu valor monetário, no excelente negócio que seria construir um aldeamento naquele local ou o caso de uma pessoa que, num museu, imagina o que seria ter um determinado quadro em sua casa, se ele combinaria com os móveis e tapeçarias da sala. Comprar uma pintura ou uma escultura considerando esse acto como um investimento com o qual se pretende obter benefício económico e social é também uma negação da atitude estética ou pelo menos um obstáculo à fruição das obras artísticas em todo o seu esplendor.

b) Não é uma atitude cognitiva (de conhecimento).

A relação com os objectos naturais e artísticos na experiência estética não é motivada primordialmente pela vontade de adquirir e de ampliar conhecimentos.
Imaginemos que estudantes de História de Arte visitam vários monumentos e se revelam capazes de identificar os vários estilos arquitectónicos, as características de cada um e as diferentes épocas a que pertencem. Nada há de negativo neste comportamento porque o conhecimento permite desfrutar com mais prazer a contemplação das obras artísticas (é importante educar o gosto e neste sentido o conhecimento artístico é um auxiliar muito valioso de uma atitude — a estética — que não é em si mesma cognitiva). Contudo, se contemplam esses monumentos para consolidar conhecimentos adquiridos ou para os pôr à prova, não podemos dizer que a sua atitude seja estética. Se gostamos de arte mas predominam objectivos profissionais e sociais na nossa relação com as obras de arte corremos o risco de nos afastarmos da forma de contemplação pura e desinteressada que caracteriza a atitude estética.
Pode-se também dizer que o biólogo que estuda um bosque de árvores milenares para verificar o estado da sua flora manifesta uma atitude cognitiva e não estética, tal como o antropólogo que estuda a arquitectura e a cerâmica de uma comunidade para conhecer os seus costumes.

c) Não é uma atitude subordinada a princípios e objectivos morais.

Se uma pessoa sente prazer na contemplação de um dado objecto estético (filme, poema, romance, conto…) somente por lhe reconhecer valor moral, a sua atitude não é estética. A nossa atitude só terá forma estética se dermos atenção ao objecto contemplado por si mesmo e não à relação do objecto com os nossos conceitos e princípios morais.

Em suma, a experiência estética é desinteressada, não porque seja indiferente ou passiva, mas porque na contemplação do objecto o sujeito se comporta como se ele não tivesse qualquer utilidade. A contemplação do objecto não tem qualquer finalidade situada fora de si própria. Por isso, a experiência estética é, segundo Kant, puramente contemplativa, isto é, livre de qualquer forma interessada de relação com objectos naturais ou artísticos. Manifestar desinteresse em termos estéticos não significa dizer que o objecto contemplado não tem qualquer importância ou que, como vulgarmente se diz, é desinteressante. Quando a respeito da experiência estética se fala em satisfação pura e desinteressada, estamos a dizer que não está presente aquele tipo de interesse que tem a ver com as nossas vantagens ou desvantagens. Consideramos algo simplesmente por si mesmo e não por referência à sua utilidade para nós ou para todo o social. Não subordinamos a obra de arte a desejos sensoriais ou a qualquer conceito moral, político ou religioso.

d) O belo é o símbolo da moralidade.
Há analogias entre as experiências estética e moral. A moralidade consiste no sentimento de puro e simples respeito pela lei racional (a lei moral), ou seja, em agir de forma pura e desinteressada; a experiência da beleza é um sentimento puro e desinteressado de prazer. O bem moral e o belo valem pela sua forma, ou seja, pela rejeição de qualquer condicionamento empírico, centrando-se no interior do sujeito. Assim, Kant, embora saliente as diferenças, considera que, pela sua pureza e desinteresse, a vivência da beleza é uma propedêutica, uma preparação para o desenvolvimento da atitude moral, uma mediação que permite pensar a harmonia entre o homem como ser moral ou inteligível e o homem como ser fenoménico ou sensível, natural.»
Adaptado de Frederíck Coppleston, History of Philosophy, vol. 7

2. O JUÍZO TELEOLÓGICO

O juízo estético é subjectivo dado que representa o objecto natural (e a obra de arte) como se ele cumprisse uma finalidade: dar prazer ao sujeito que o contempla.
Referindo-se ao juízo teleológico, Kant considera-o objectivo no sentido em que ele julga que um certo objecto cumpre um fim da Natureza não sendo simplesmente a causa de sentimentos ou satisfações estéticas.
O juízo estético, exprimindo o sentimento da harmonia original entre as faculdades de conhecimento, descrevia as condições subjectivas do acto de conhecer. Na verdade a harmonia entre sensibilidade, imaginação e entendimento no plano estético — plano original e primeiro — torna compreensível a sua união quando se tratar de constituir conhecimentos.
O juízo teleológico afirmando uma finalidade natural exprime as condições objectivas do acto de conhecer. O cientista é guiado nas suas investigações por um determinado conceito de natureza: a natureza forma no seu todo uma unidade ou sistema inteligível como se fosse o produto de uma causa que actuou com uma intenção. Se o espírito humano na sua procura de sentido para o mundo não partir do pressuposto de que o mundo tem sentido, a sua actividade não terá orientação, não haverá investigação propriamente dita.
A ideia de uma finalidade da natureza — a ideia de uma adaptação da natureza ao nosso poder de conhecimento — é um pressuposto indemonstrável da actividade científica, embora esta consista — no tempo de Kant — numa explicação geral dos fenómenos que traduz o comportamento destes em termos mecânicos. Quanto aos resultados da sua actividade, a ciência vê a natureza como uma máquina, ou seja, encontra a explicação dos fenómenos numa causa ou força motriz exterior (um outro fenómeno) e não numa finalidade que esses fenómenos ou realidades naturais realizariam. Desde o século xvii a ciência da natureza é mecanicista: explica os acontecimentos naturais unicamente através da causa que os produz, como simples resultado de acontecimentos anteriores0'.
Para Kant, a ideia de finalidade da natureza não está em contradição com a ideia de natureza formada pelo conhecimento científico: sistema regido nos seus aspectos gerais pela necessidade causal mecânica. Porquê? Porque a finalidade da natureza não é um princípio da própria natureza — Kant não afirma que há causas finais operando na natureza —, mas simplesmente um princípio a priori do juízo reflexionante, uma regra que o sujeito dá a si mesmo (e não às coisas) para dar sentido ao que não pode ser conhecido ou explicado por causas meramente mecânicas. A finalidade é simplesmente uma ideia que está na mente daquele que reflecte sobre a natureza: é uma ideia reguladora bastante útil porque na natureza há uma série de fenómenos que não são satisfatoriamente explicados por causas meramente mecânicas. Por exemplo, não se pode compreender um ser vivo senão considerando que tudo nele é reciprocamente meio e fim (as partes parecem existir em vista do todo e "vice-versa"). O exemplo dos seres vivos ou organizados torna legítimo, segundo Kant, pensar a natureza na sua totalidade como um sistema teleológico, i. e., produzido por uma causa superior que actuou segundo um determinado fim: supõe-se a natureza como obra de uma causa superiormente inteligente e logo como totalidade inteligível, dotada de sentido.
Qual a finalidade dessa Causa superior, qual o fim segundo o qual se determinou a criar o mundo ou a natureza?
Segundo Kant, esse fim não pode ser nenhum fim relativo ou condicionado mas um fim incondicionado. Ora, como já nos disse a moral kantiana, o único fim em sim mesmo (incondicionado) é o homem considerado como ser que procura agir moralmente. A natureza aparece-nos então como um sistema teleológico — é pensada como se fosse uma totalidade em que cada elemento cumpre uma finalidade — produto de uma Causa superior (Deus) cuja finalidade ou fundamento de determinação ao criar o mundo foi o homem enquanto ser moral (enquanto ser que age segundo fins morais).
Ora uma natureza que supomos como criada em função do homem como ser moral, pode ser pensada como susceptível de harmonizar-se com a moralidade. A perspectiva teleológica da natureza é, pois, a condição que torna possível pensar a realização de acções morais no plano fenoménico. Conceber a natureza (a dimensão fenoménica) como se realizasse fins permite pensar que a acção que visa, que tem como fim, o aperfeiçoamento do homem enquanto ser racional (a acção moral) pode ter nela o seu lugar. Mediante essa ideia reguladora que é a ideia de finalidade — "ficção" útil e justificável dado que a visão mecanicista da natureza é, em vários aspectos, limitada — podemos pensar que a natureza, apesar da rígida necessidade causal que de um modo geral a define, não é incompatível com a realização dos fins essenciais do homem que, para Kant, são de ordem moral.

3. A FILOSOFIA KANTIANA DA HISTORIA

A reflexão kantiana aplica ao campo dos acontecimentos históricos a ideia de finalidade utilizada pelo juízo reflexionante na sua compreensão da natureza. Trata-se portanto de compreender o devir histórico à luz dessa ideia de finalidade, concebendo-a como obedecendo a um plano, interpretando-a como tendo um fio condutor, um propósito racional, em suma, um sentido que a torne inteligível.
Uma objecção imediatamente surge: o trajecto das coisas humanas parece absurdo (sem sentido ou nexo). Contemplando o palco do mundo, vemos os indivíduos impelidos no seu dia-a-dia por egoísmos, interesses e paixões que nos fazem duvidar que seja possível vislumbrar, nesse palco onde vaidade, loucura e maldade se misturam, um propósito racional. O próprio Kant tem consciência de que a História, de uma forma geral, oferece um espectáculo repugnante. Os sinais de justiça e sabedoria nas acções humanas são ofuscados pelos inúmeros exemplos de vaidade, gula, ambição sem limites e sem escrúpulos e, acima de tudo, de ignorância. Contudo, esta visão desiludida da História, da vida humana, só vale ao nível dos actos particulares ou individuais, considerados em si. Que o comportamento do indivíduo não mostre sinais de progresso moral é uma razão para conceber a História como obedecendo a um plano não humano mais sim natural: o desígnio da natureza é a base da própria História.
A Crítica da Razão Pura acentuara uma concepção determinista da natureza. Esta era essencialmente o reino da necessidade, do mecanicismo, onde não havia lugar para a liberdade. Enquanto ser natural, o homem, tal como os outros animais, é parte de um mundo físico regulado por leis naturais ou necessárias.
Na sua reflexão sobre o sentido da História, na sua filosofia da História, Kant concebe a natureza num sentido teleológico, dando-lhe o nome de Providência. Pode-se dizer que o que a natureza faz é trabalho da Providência. O desenvolvimento histórico do homem tem um fio condutor que corresponde a um desígnio ou finalidade da natureza: a perfectibilidade da espécie humana deve ser actualizada, passar de potência a acto. Por outras palavras, a natureza dá à História um sentido que consiste no aperfeiçoamento de todas as disposições racionais do ser humano, considerado não como indivíduo mas como espécie.
O homem, de ser potencialmente racional, deve, para corresponder ao desígnio da natureza, tornar-se racional, desenvolver a sua inteligência e cultura de forma a romper com a sua animalidade. Este progresso intelectual e cultural é por Kant entendido como progresso em direcção à moralidade.
Resumindo: há uma interpretação teleológica da natureza: Que significa isto? Significa que a História tem um fim que corresponde a um desígnio ou intenção da natureza, da Providência. Qual é esse fim? O desenvolvimento total daquilo que faz do homem um ser racional.
Como a afirmação do homem como ser racional, a sua libertação face aos instintos e inclinações empíricas, é uma exigência da lei moral, podemos dizer que a interpretação teleológica da História é uma interpretação moral. A ideia que orienta a História e que é um desígnio da natureza é a ideia de progresso moral.
A Crítica da Faculdade de Julgar procurou pensar a natureza de forma a tornar concebível a realização nela do homem como ser moral. As obras de Kant dedicadas à filosofia da história interpretam a sucessão dos eventos históricos como uma lenta mas progressiva marcha em direcção a um estádio ideal de racionalidade (desenvolvimento completo do homem como ser dotado de razão) que equivale a um estádio ideal de liberdade ou de moralidade. O que é curioso e talvez desconcertante é que a realização da moralidade na história é agora concebida como um desígnio, uma finalidade que a Natureza estabelece e do qual o homem se vai aproximando voluntária ou involuntariamente, como que impelido por aquilo a que se pode chamar "a força das coisas". Este desígnio ou intenção da Natureza (actualização completa das potencialidades racionais do homem enquanto espécie e não enquanto indivíduo) constitui o sentido, o fio condutor, dessa sucessão aparentemente caótica e desconexa de eventos que é a história.
3.1. O meio ou instrumento de que a Natureza ou Providência se serve para encaminhar o homem em direcção ao pleno desenvolvimento da sua racionalidade ou moralidade é a insociável sociabilidade dos homens.

A tomada da Bastilha (14 de Julho de 1789), símbolo da opressão feudal.
«Ao falar do homem, Kant reconhece que existem nele três disposições naturais ou essenciais, constitutivas da sua existência:
A disposição para a animalidade em função da qual se explica a capacidade técnica
do homem.
A disposição para a humanidade em função do qual se explica a sua capacidade prag
mática.
A disposição para a personalidade.
A animalidade e a humanidade constituem a dimensão empírica-sensível (fenoménica) do homem e a personalidade constitui a sua dimensão ético-social.
A primeira dimensão significa que o homem é um ser egoísta, fechado em si mesmo, um fenómeno entre outros fenómenos e é a propósito desta dimensão que Kant fala da natural insociabilidade do homem.
A segunda dimensão significa que o homem está inserido no reino dos fins, no reino moral, pertencendo a uma comunidade de pessoas, i. e., de seres que se consideram a si mesmos e aos outros como fins em si e não como meios, não como instrumentos ao serviço de interesses ou inclinações sensíveis próprias ou alheias. A propósito desta dimensão Kant fala da sociabilidade do homem.
Uma vez que a dimensão empírica (centro dos interesses e egoísmos que opõem os homens) e a dimensão ético-social coexistem num mesmo ser humano, devemos conceber este como um ser que encerra em si uma paradoxal complexidade, "uma insociável sociabilidade" ou por outras palavras, uma "sociável insociabilidade". Veremos, em seguida, que esta complexidade, esta "insociável sociabilidade" desempenha um papel importante na história."
Por natureza, a tendência do homem é mais a de competir com os outros do que trabalhar e viver em harmonia com eles. Os homens são seres "insociavelmente sociáveis". O homem desenvolve as suas capacidades em sociedade, aí desperta o seu espírito de competição e se desenvolvem as suas aptidões. Mas esta tendência a juntar-se aos outros tem como contrapartida, igualmente natural, o facto de cada qual querer fazer as coisas de acordo com as suas ideias, a seu gosto. Esta propriedade de querer dispor de tudo a seu gosto, este egoísmo, é evidentemente uma característica insocial. Se todos manifestarem este espírito de independência é evidente que cada qual verá no outro uma resistência à sua vontade ou desejo, sentindo então a propensão a "isolar-se" (a não colaborar), a exercitar a sua agressividade contra os outros.
A par da tendência a integrar a sociedade há, portanto, a tendência a desintegrá--la. Ao falar da "sociabilidade insociável" do homem, Kant sublinha o papel da insociabilidade. A resistência que cada qual opõe aos outros, i. e., a vontade de se tornar independente da vontade dos outros, a vontade de dominar e de não ser dominado, fomenta o espírito de competição, sem o qual tudo estagna, nada se desenvolve. A nossa afirmação é sempre não um acto isolado, mas a ultrapassagem do outro em capacidade e aquisições. Por mais independentes que queiramos ser, a procura de determinados estatutos e honras faz-se no seio da sociedade, opondo resistência aos outros e procurando afirmar-nos.
É no contacto e no conflito com os outros que cada qual desenvolve as suas aptidões, é querendo ser melhor do que eles que nos tornamos senhores de nós mesmos. Sem este desejo de independência não haveria cultura nem progresso. A insociável sociabilidade é uma força progressiva. A natureza fez-nos competitivos, egoístas, apaixonados, para melhor desenvolvermos as nossas capacidades latentes, transformando-nos assim em seres que, ao termos de viver com os outros, de os "suportar", somos forçados a disciplinar os nossos instintos individualistas, a autogovernarmo-nos, a tornarmo-nos pessoas civilizadas.
Em suma, o meio de que a natureza se serve para determinar o homem ao pleno desenvolvimento das suas disposições racionais é o antagonismo entre os homens, ou seja, a sua insociável sociabilidade. O homem enquanto indivíduo quer concórdia e paz, mas a natureza sabe o que é melhor para a espécie e quer a discórdia. A insociabilidade ou o antagonismo entre os homens é fonte de progresso, é uma força progressiva que obriga os homens a disciplinarem os seus instintos individualistas sobrepondo-lhes a razão.
Sabemos que a moralidade em sentido estrito não pode ser objecto de uma verificação empírica. Podemos contudo pensar que o progresso no plano legal ou jurídico é um indício — e só isso — de um progresso do homem na sua realização moral. Por outras palavras, a constituição de uma comunidade política assente em princípios juridicamente justos — o progresso legal ou jurídico — pode ser interpretada como sinal de que as capacidades racionais ou morais do homem estão a actualizar-se.
A constituição de uma sociedade civil perfeitamente justa (uma sociedade ideal) é a tarefa grandiosa que a Natureza ou a Providência atribui ao homem porque só numa sociedade livre regulada pelo direito é possível o completo desenvolvimento das disposições racionais do homem.
Se as características insociáveis do homem são o meio pelo qual a natureza arranca o homem do estado de preguiça e indolência, fomentando o espírito de domínio e de competição sem o qual nada se desenvolve, elas devem contudo ser restringidas para não provocarem o caos e a anarquia. Uma sociedade devidamente organizada deve criar um espaço no qual, sob regras geralmente reconhecidas, os indivíduos entrem em competição uns com os outros, exerçam o seu antagonismo. A constituição civil, o conjunto de leis que regulam as relações entre os indivíduos, não remove este antagonismo, unicamente assegura que ele não dissolva a sociedade. A liberdade selvagem, sem lei, seria a anulação da liberdade. A liberdade de cada um deve ser limitada pela liberdade dos outros. Inseridas na "cerca" da constituição civil, as inclinações egoístas do homem tornam-se úteis, benéficas, porque o conflito dentro dos limites da lei força cada indivíduo a afirmar e desenvolver os seus talentos. O que a natureza exige do homem é a defesa dos seus interesses mediante um completo desenvolvimento das suas capacidades e aptidões. Só assim a espécie humana se desenvolverá. Este desenvolvimento exige a instituição de uma constituição civil perfeita.
"Uma constituição civil perfeitamente justa (...) deve constituir para o género humano a mais elevada tarefa da natureza" (Kant, op cit., "5." Proposição "j.
Falar de leis que regulam as energias competitivas dos cidadãos é falar do Estado, de uma autoridade que está acima de cada um dos cidadãos. Como é possível que o homem aceite e respeite uma autoridade à qual se deve subordinar quando, por natureza, ele é dominado pelo amor-próprio, pelo egoísmo? As leis positivas sustentadas pelo poder do Estado são algo a que o homem deve obedecer com vista à sua protecção e sobrevivência: a anarquia é o reino da força bruta, sem restrições. Vemos que as leis positivas devem ser observadas porque, no fundo, a sua função é garantir que cada um não viole a liberdade do outro e que a competição não destrua a vida social. O Estado e as leis que salvaguarda é o factor que impõe limitações mas não suprime o instinto competitivo dos homens. Uma vez que nenhum homem acredita na garantia ou na promessa de respeito pelos seus interesses feita por outro, só um terceiro termo, a autoridade do Estado, assegura a possibilidade de uma competição não anárquica ou selvagem entre os homens. Assim, sem o Estado não teria havido progresso.
O homem é um animal que precisa de um senhor que force a sua vontade particular obrigando-a a obedecer a uma vontade válida para todos, de modo a que todos possam ser livres. Contudo, este senhor é um indivíduo da espécie humana e como tal exige uma autoridade acima de si. Eis um problema cuja perfeita solução parece impossível: a autoridade tem de estar acima dos homens e, contudo, também é um homem. Portanto, o que a natureza nos impõe é somente uma aproximação à solução deste dilema.
3.2. O ideal da "paz perpétua": o desejo de uma comunidade política mundial submetida ao direito
Como as sociedades humanas não vivem isoladas umas das outras, como os Estados estão inseridos no palco das relações internacionais, a constituição de uma sociedade perfeitamente justa é um ideal que só é pensável com base num outro ideal: a criação de uma constituição legal ou jurídica regendo as relações entre os diversos Estados.
Se a autoridade de cada Estado assegura a possibilidade de uma competição não anárquica ou selvagem entre os indivíduos contribuindo assim para uma cena moralização das relações interindividuais, é também necessário que se estabeleça uma relação legal, juridicamente justa, entre os Estados. Tal como os indivíduos têm de ver controlada pela autoridade do Estado — pelo poder jurídico-político — a sua tendência para a competição e o antagonismo sem regras, os Estados, caracterizando-se pela insociabilidade, pelo confronto e vontade de domínio, têm de submeter-se a uma Ordem Internacional fundada no direito e acima da qual nenhum deles se deve situar. A constituição de uma Federação Mundial de Estados submetida ao Direito Internacional seria a forma adequada, a condição sem a qual se tornaria impensável o ideal de racionalidade e moralidade na relação entre os homens.
A guerra é o meio de que a natureza se serve para criar a necessidade da unidade legal entre os Estados, que os diversos povos, que os conflitos militares espalharam pelo mundo, se viram na necessidade de constituir. Tal como forçou os indivíduos a estabelecer em relações legais entre si, a natureza forçou os Estados a melhorarem as suas relações. Estão assim lançados os fundamentos para que os homens dos diversos Estados possam viver em paz uns com os outros. A ideia de uma constituição cosmopolita, de uma federação mundial de Estados, pode parecer no presente uma quimera. No entanto, Kant acredita que o sentido da História é a realização de uma finalidade: a paz perpétua. Por esta deve entender-se uma ordem internacional estável que não faz desaparecer o antagonismo e de algum modo a hostilidade entre as nações. Esses antagonismos, essa é a esperança de Kant, serão regulados pela lei. O estado de liberdade ou antagonismo irrestrito entre as nações, segundo a visão optimista de Kant, tenderá a desaparecer.
O medo de perigo, da destruição que a guerra provoca, será o meio de educar os povos e encontrarem uma nova forma de resolverem os seus assuntos no palco internacional. A guerra, pela angústia, destruição e horror que desencadeia, é útil para que surja o desejo de paz universal que apresse a sua realização.

A ideia de Kant é a de que o aumento a nível mundial dos arsenais bélicos, o desenvolvimento dos meios de destruição (que vai a par de um desenvolvimento da economia mundial), fará com que se chegue a um ponto em que o conflito armado será rejeitado como forma de exercício da política internacional. Seria esse o sentido secreto da História.
Competiria a uma "Sociedade das Nações" administrar a "paz perpétua" entre os Estados. Poder-se-á objectar e com razão que é um sonho utópico. Mas em Kant o ideal comanda a existência do homem em todas as suas dimensões. E não podemos negar que a ideia cosmopolita de uma "Sociedade das Nações" não tenha conhecido alguns ténues lampejos de realização. A seguir à Primeira Guerra Mundial uma Sociedade com esse nome foi fundada — é a antepassada da ONU — inspirando-se no projecto kantiano da "Paz Perpétua". Kant não é um optimista cego. Sabe que a natural insociável sociabilidade dos homens pode conduzir à paz perpétua mas também à guerra perpétua. Admite, contudo, que há razões para ter esperança na criação de um Estado mundial ou cosmopolita, na submissão das relações internacionais ao direito internacional. Esperança essencialmente numa tendência moral da espécie humana.
Segundo Kant, a paz perpétua é uma ideia reguladora da actividade política e das relações entre Estados. Isto quer dizer que ela é um ideal e não algo constitutivo da actividade política. A política opera sempre em condições empíricas que mostram que o único meio de obrigar um Estado a renunciar ao uso da violência é o recurso à força. A paz perpétua é uma ideia cuja realização ultrapassa as possibilidades da experiência e da acção humana. É o ideal mais elevado na medida em que corresponde ao projecto de uma humanidade que teria finalmente alcançado uma forma de vida conforme à razão.
Irrealizável, a paz perpétua (a reconciliação universal) é uma ideia não constitutiva da actividade política mas sim uma ideia reguladora. O que significa isto? Significa que as operações políticas não devem estar simplesmente ao serviço do poder e da ordem mas igualmente ao serviço do homem.
Assim, tal como é necessário que o homem acredite na liberdade como valor supremo para dar sentido ao combate pelas liberdades, é também necessário que creia na paz perpétua como Ideia que mantém a esperança que depositamos no devir moral da humanidade.
Como diz Jean Grondin.
«Se o curso tortuoso das coisas humanas permite entrever um progresso em direcção a algo melhor, é porque as revoluções — Kant refere-se sobretudo à Revolução Francesa — efectuadas idealmente em nome de uma mais ampla justiça não podem deixar de produzir acontecimentos que são marcos históricos — "milestones" como magnificamente dizem os anglo-saxões — eventos que recordam à humanidade a sua própria promessa de moralidade impondo-se como limites para trás dos quais não se deve recuar. Certamente haverá sempre recaídas das colectividades humanas na barbárie mas são precisamente aqueles monumentos ou signos comemorativos da razão que permitem identificá-los como recuos da humanidade. Há aquisições históricas que fazem com que depois delas nada possa ser como dantes.»
In Emmanuel Kant: avant — après, Críterion, Paris, 1991, p 152.

A filosofia kantiana da História chama a atenção pelo teor paradoxal das suas teses.
Aquilo que o homem devia fazer segundo as leis da liberdade e não faz, a natureza encarrega-se de que o faça quer queira quer não. O aperfeiçoamento moral do homem, o seu desenvolvimento na plenitude da racionalidade, é algo de que a natureza ou Providência se
ocupa, fazendo com que o homem dê às suas acções um sentido involuntário. A paz perpétua, exigência moral, porque só no seio de uma comunidade que não se desgasta e consome na tentativa de superar e destruir outras, o homem pode desenvolver integralmente a sua racionalidade, é promovida através de meios que podemos considerar imorais. Com efeito, são as propensões ou inclinações egoístas do homem que a natureza usa para promover o desígnio ou propósito racional que a vontade humana por si mesma é incapaz de efectivar. Ao longo da História a paz emerge da guerra, a ordem do conflito. Pode-se em suma dizer que sem a imoralidade dos homens a moralidade não seria promovida, não progrediria.
O que se torna difícil de compreender na filosofia kantiana da História é o facto de a História ter um propósito ou desígnio que não é instituído pela liberdade humana (é um desígnio da natureza ou da Providência) e que contudo tem como sentido promovê-la. Como compreender que algo que está para além da liberdade humana não entre em conflito com esta? Como compreender que a Providência use meios imorais e não anule a liberdade moral do homem?
A filosofia da História tinha como finalidade estabelecer uma nova ponte entre natureza e liberdade. O seu suposto fundamental é o de uma natureza teleológica (tem um desígnio, uma intenção), que, de uma forma quase determinista, explora, sem que eles tenham disso uma clara consciência, os desígnios particulares dos homens. Não nos parece haver uma harmonia, uma verdadeira comunicação entre os dois domínios em disjunção: a natureza e a liberdade. Com efeito, a liberdade do homem é, no fundo, um limite, uma barreira, diante da qual se retrai a natureza, que usa meios imorais como meio para a realização incompreensível de um desígnio moral.

 QUARTA PARTE
As revoluções copernicianas de Kant

O tema da "revolução coperniciana" não diz simplesmente respeito ao plano do conhecimento, embora os textos de Kant referentes a essa sua revolução incidam no problema da ciência e da sua fundamentação metodológica. Ora, na verdade, que "o objecto gire em torno do sujeito" (entenda-se do sujeito humano) é algo que se pode verificar em planos não científicos como a moral, a religião e a estética.

1. A "REVOLUÇÃO COPERNICIANA" DE KANT NO PLANO DO CONHECIMENTO

A "revolução coperniciana" de Kant traduz o primado da actividade do sujeito no plano do conhecimento, uma vez que embora comece com a experiência, ele procede ou deriva das formas a priori do sujeito. O conhecimento só é possível se o objecto for adequado à nossa capacidade de conhecer. Assim, o nosso conhecimento define-se pelo seu carácter transcendental porque, propriamente falando, nós não conhecemos os objectos em si mesmos, mas a forma de os conhecer. Por isso diz Kant "que só conhecemos a priori nas coisas o que lá pomos". A universalidade e a necessidade que caracterizam os juízos sintéticos a priori ou científicos são obra do sujeito e dizer que conhecemos os objectos cientificamente é dizer que conhecemos a relação necessária que entre eles estabelecemos.
Assim, o objecto da actividade cognitiva gira em torno do sujeito e por ele devemos entender a objectividade que o sujeito constitui. Por objectividade entendemos o conhecimento científico. Conhecer cientificamente é estabelecer relações necessárias entre os objectos, ou seja, é objectivar. A objectividade é um acto ou uma construção do sujeito: é o conjunto de relações necessárias que certas formas a priori (não derivadas da experiência) do sujeito estabelecem entre os dados empíricos. O conhecimento objectivo depende (gira em torno) de condições a priori que só podem estar no sujeito que conhece.
Tal como Copérnico substituiu o geocentrismo pela ideia de que a Terra girava em torno do Sol, Kant substituiu uma concepção passiva do conhecimento, que fez deste um registo da realidade, pela ideia de que a nossa faculdade de conhecimento impõe as suas formas e as suas leis à realidade, não sendo determinada pelos objectos. Só esta revolução metodológica permite fundamentar o conhecimento científico.
l. l. A superação do racionalismo dogmático e do empirismo britânico
Em Kant, o entendimento humano é o criador da estrutura inteligível da realidade ou do conjunto de coisas que com o sujeito se relacionam: os fenómenos. Qualquer acesso cognitivo à realidade em si mesma, i. e., transcendendo o espaço e o tempo, está vedado. O sujeito é criador do objecto simplesmente se por este entendermos a objectividade, ou seja, as relações necessárias, causais, que as suas formas a priori estabelecem entre os dados sensíveis. Pelas considerações já apresentadas, devemos concluir que a "revolução coperniciana", a atribuição de um papel verdadeiramente activo ao sujeito, implica a limitação desta actividade ao domínio da experiência possível.
O racionalismo dogmático acreditava cegamente nas capacidades da razão pura. Julgava que esta podia conhecer as realidades metafísicas. Mas julgava que tal era possível porque não efectuara uma análise crítica das suas capacidades (era dogmático). Efectuada essa análise chega-se à conclusão de que a razão pura (a razão independentemente da ligação a qualquer outra faculdade e aos objectos empíricos) nada pode conhecer. A "revolução coperniciana" ao afirmar o papel central do sujeito no conhecimento objectivo estabelece limites à sua actividade: só estabelece relações necessárias ou causais entre os dados que consigo se relacionam, ou seja, entre os fenómenos. As realidades metafísicas são inacessíveis em termos cognitivos. O conhecimento não deriva da experiência mas começa com ela e, portanto, embora dependente das formas a priori do sujeito, só pode ser conhecimento de realidades sensíveis.
Se a superação do racionalismo está implícita na "revolução coperniciana", a ultrapassagem do empirismo igualmente o está. Afirmar que todo o conhecimento começa com a experiência e dela deriva é um exagero. Desconhece-se a existência no sujeito de estruturas a priori, independentes da experiência, que dela não derivam e que aplicadas aos dados empíricos, melhor dizendo, às coisas, as transformam em objectos a conhecer (coisas em relação espácio-temporal com o sujeito) e em objectos de conhecimento (dados objectivados pelas categorias do entendimento). Não podemos explicar a possibilidade do conhecimento científico se assumirmos que o sujeito é fundamentalmente passivo: temos de afirmar, contra o empirismo, a construção do objecto de conhecimento por parte do sujeito. Se o conhecimento é acerca dos objectos empíricos, então começa com a experiência, mas não deriva todo dela, porque o fundamento da validade da ciência como conhecimento a priori está nas estruturas não empíricas do sujeito, não depende da constante referência à experiência.
A filosofia de Kant não é aproveitamento puro e simples do que há de positivo quer no racionalismo quer no empirismo. Não é o resultado de uma selecção. É o produto de um esforço crítico que, ao analisar, ao detectar as insuficiências dessas duas correntes, conclui que nenhuma delas tem validade, devendo, portanto, ser superadas. A afirmação das insuficiências do empirismo está intimamente ligada à afirmação da possibilidade do conhecimento a priori. A superação do racionalismo tradicional;’. e., a negação da possibilidade da metafísica enquanto ciência, está intimamente ligada ao estabelecimento dos limites do conhecimento a priori. As grandes verdades da metafísica são assim colocadas fora do alcance das extravagâncias racionalistas e perdem o estatuto de argumentos pretensamente científicos ao serem referidas à consciência moral.
Sintetizando:
A crítica das possibilidades da razão pura em termos cognitivos consiste nisto: o conhecimento começa com a experiência e só pode ser acerca dos objectos desta, porque sem isso nenhum juízo sintético ou cognitivo é possível. Se as extravagâncias da razão pura devem ser rejeitadas para que se constitua um conhecimento científico devidamente fundamentado e credível, as limitações do empirismo impedem também uma fundamentação válida dos conhecimentos científicos ou a priori, porque desconhece a função de estruturas transcendentais do sujeito sem as quais não há organização da experiência. O conhecimento científico é um facto que para ser devidamente fundamentado implica a superação do racionalismo dogmático e do empirismo'.
Assim, Kant supera duas correntes que reduziam, respectivamente, o conhecimento a uma análise conceptual (o racionalismo tradicional) e a juízos sintéticos a posteriori (o empirismo) revelando-se ambas impróprias para legitimar — mostrar como é possível — aquilo que era um facto: a existência indubitável de conhecimentos universais e necessários, /'. e., de juízos sintéticos a priori.

1.2. Consequência fundamental da revolução metodológica kantiana: a metafísica não pode ser a ciência primeira da qual todas as outras dependeriam (a emancipação da ciência face à metafísica)
"Com Kant a metafísica deixa de ser um momento na constituição da ciência (física, matemática)." (Alexis Philonenko)
Contrariamente a Descartes, que se apoia numa nova metafísica, em novos princípios ou alicerces para construir o edifício científico, Kant verifica e justifica que não é possível fundar a ciência, conhecimento que progride, sobre a metafísica, disciplina onde reina a luta interminável entre teses opostas e, portanto, saber confuso, que não progride. Como fundar a ciência sobre a metafísica se sabemos, através da análise transcendental das fontes, valor e limites do conhecimento humano, que a metafísica não tem valor científico? Não faria sentido construir sobre algo inexistente uma física e uma matemática que são ciências existentes de facto.
Se a propósito de Kant e Descartes se fala de fundamentação da ciência, temos de distinguir o tipo de fundamentação:

1 — Em Descartes temos uma fundamentação metafísica da ciência, isto é, uma fundação baseada em realidades metafísicas tais como Deus e alma (mas sobretudo Deus, que é o verdadeiro pilar do sistema científico que Descartes se propôs construir)"';
2 — Em Kant temos uma fundamentação transcendental e não transcendente do conhecimento científico, isto é, uma análise das condições a priori de possibilidade do conhecimento científico que não remete para lá das faculdades humanas intervenientes na constituição da ciência (entendimento e sensibilidade e de algum modo a razão). A fundamentação da ciência esgota-se na análise das funções das faculdades que constituem o nosso poder de conhecer. Não há necessidade de referência a uma garantia metafísica, no sentido tradicional do termo.

2. A "REVOLUÇÃO COPERNICIANA" DE KANT NO PLANO DA MORAL

2. l. Um novo conceito de bem moral
No plano moral, também o objecto gira em torno do sujeito. O bem moral é definido pela vontade do sujeito na sua relação com a lei moral. O bem moral não é algo que a vontade procure atingir mediante as suas acções, mas sim uma acção boa em si mesma, isto é, o respeito puro e simples pela lei moral: o bem moral consiste em agir por dever, é um sentimento de respeito absoluto pela lei moral e por isso é imanente à vontade racional do sujeito. O objecto moral é, assim, constituído pelo sujeito, que pela sua pureza e racionalidade dá às suas máximas o valor de princípios objectivos. O bem moral deixa de ser um fim para o qual o cumprimento de determinados deveres era um meio, tornando-se um qualificativo da vontade que age por dever, de uma forma absolutamente desinteressada. O bem não está naquilo que se faz, mas na forma como agimos, isto é, na intenção que anima a vontade quando decide agir.
Não há objecto (bem) antes da lei moral, pois é o cumprimento da lei que constitui o bem. Diremos então que "boa" é um qualificativo que a vontade, agindo intrinsecamente em conformidade com a lei da sua liberdade, dá a si própria. O bem é, em última análise, uma vontade boa. O homem é criador dos seus próprios fins. A sua acção não se exerce face a uma realidade (o bem moral) que lhe seja dada para cumprir. Quer isto dizer que a lei moral é absolutamente primeira, não se deduz de nada.
(" O fundamento e o valor da ciência encontram-se para Descartes fora do espírito humano (Deus), ao passo que em Kant se dá o contrário. Na questão "Que posso saber?", Deus não desempenha papel algum. A ciência humana não necessita de garantia divina. O problema da inteligibilidade do mundo não é colocado para lá das forças do homem. O homem pode fazer ciência mesmo que seja ateu. Quer Deus exista ou não, a ciência em nada é afectada. Ela só depende do homem.

Podemos dizer que a moral anterior a Kant é caracterizada pela ausência do imperativo categórico. Toda a acção é um meio para a realização de uma finalidade, e é com base nessa finalidade preestabelecida que a moralidade da acção é avaliada.
Para Kant o próprio fim da acção boa é ela mesma e não se estabelece o que é o bem para depois se exigir à vontade que estabeleça os meios que o permitem alcançar.
Em suma, também aqui se evidencia o carácter activo do sujeito: o objecto moral (o bem) não é dado ao sujeito nem pode derivar da experiência mas é definido pelo sujeito: o bem é agir por dever puro e simples.
«Todas as éticas pré-kantianas partiam da determinação daquilo que é 'bem moral' e 'mal moral', daí deduzindo a lei moral, prescrevendo então o visar o bem e evitar o mal.
Em consequência do seu formalismo, Kant subverte precisamente os termos da questão: 'O conceito de bom e mau não deve ser determinado antes da lei moral, mas somente depois dela'. O que significa que 'não é o conceito de bem como objecto que torna possível e determina a lei moral, mas, ao contrário, a lei moral que, antes, determina o conceito de bem, no sentido que este mereça ser chamado assim tão absolutamente'.
Em suma, é a lei moral que determina o bem moral e não o contrário. É a intenção pura ou a vontade pura que faz ser bom aquilo que quer e não o contrário (não há coisa alguma ou qualquer conteúdo dos quais poderiam derivar a intenção e a vontade pura).»
J. Reale e D. Antiseri, História da Filosofia, vol. n, p. 98

2.2. Consequência fundamental desta revolução: a emancipação da moral em relação à ciência e à metafísica
Kant fala de uma primazia da moral (da razão no seu uso prático). Toda a Crítica da Razão Pura se destina a legitimá-la de um ponto de vista teórico, isto é, a mostrar a sua possibilidade lógica. O interesse supremo da razão é prático (moral). A moral, diz Kant, é a fonte da filosofia crítica. A filosofia crítica é dinamizada, animada pela necessidade de mostrar que o homem não é unicamente ciência, sujeito epistémico. É também e sobretudo sujeito moral. Por esse motivo, a razão sente-se mais atraída para o mundo moral (supra--sensível, da liberdade, numénico) do que para o mundo da ciência, confinado aos limites fenoménicos, espácio-temporais. Por esse motivo a razão tenta, face ao dogmatismo metafísico, salvaguardar um uso supra-sensível legítimo (o uso prático, a moral), tenta impedir que tudo seja reduzido a fenómeno, ao império da necessidade mecânica, negador da liberdade, e igualmente que a razão permaneça no impasse das antinomias.
Para Kant, a moral é independente da metafísica. Isto não quer dizer que nada tenham a ver uma com a outra. Bem pelo contrário. A moral é para Kant o fundamento de uma nova metafísica, legítima, porque é no uso prático da razão que temos uma via de acesso aos objectos da metafísica: liberdade, imortalidade e Deus.

Em Kant, a moral é autónoma face à metafísica dogmática, pseudo ciência, que por Descartes era considerada a ciência dos fundamentos ou das verdades primeiras. Esta autonomia significa que as regras fundamentais da conduta humana não são deduzidas de proposições metafísicas pretensamente científicas nem de proposições legitimamente científica. É a distinção fenómeno-númeno que impede a dedução das regras da conduta a partir da metafísica, ao mostrar que esta não pode ser ciência, anulando assim o estatuto cartesiano de ciência primeira.
Ao dogmatismo racionalista que pretende demonstrar a existência de Deus, a imortalidade da alma, etc., para daí deduzir os deveres essenciais (seria deduzir a moral da metafísica, o dever da existência de Deus — heteronomia), Kant opõe a autonomia da moral face a qualquer ciência e, sobretudo, à dita "rainha das ciências", esse pseudoconhecimento teórico que era a metafísica dogmática.
Afirmar que Deus cria a lei moral é arruinar a autonomia da razão prática. Se Deus é condição para o horizonte de síntese que o Soberano Bem institui, o seu postulado é facultativo no sentido em que para responder à pergunta prática "Que devo fazer?" não é preciso recorrer à realidade de um legislador transcendente (negação da autonomia da razão humana). A lei moral que a mini mesmo imponho basta para me dizer que devo agir de modo a que me torne digno de ser feliz. Do ponto de vista ético, aquilo que fundamentalmente é obrigatório é o dever da minha autonomia. Sou um ser moral (sentido estrito) mesmo que não acredite em Deus. Deus é a realidade exigida simplesmente para responder à questão: "Que posso esperar?" Aquele que se conduz moralmente só pode esperar a sua total perfeição e felicidade (o Soberano Bem) se admitir a existência de Deus.

3. A "REVOLUÇÃO COPERNICIANA" NO PLANO RELIGIOSO: A RELIGIÃO NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO

Kant separa ciência e fé (religião), e, condenando a metafísica dogmática, assegurará ao lado da Física um lugar à Moral, ela mesma o princípio da Fé. Ao contrário de Descartes, mas na mesma linha de preocupações, não funda a religião na Metafísica (no sentido tradicional) mas na Moral, na razão pura prática e não na razão especulativa.
Exemplo:
A admissão da existência de Deus é feita pela razão. Mas esta admissão é um acto de fé. Podemos falar dele como fé prática pois relaciona-se com a moral, com a acção virtuosa, com o dever. A lei moral diz que é nosso dever promover o Soberano Bem. Ora não podemos conceber a realização do Soberano Bem a não ser que afirmemos que existe Deus. Assim, embora a lei moral não esteja directamente em relação com a fé em Deus, está na base de tal fé. Se a moral não pressupõe a religião (seria heteronomia) a religião pressupõe necessariamente a moral, a moralidade.
O objecto religioso gira em torno do sujeito humano: Deus é algo cuja existência é tomada por verdadeira em nome de uma exigência moral do homem. O sentido da existência de Deus está na sua relação com a vida moral do homem: fora do horizonte da moral não há razão de ser para a existência de Deus.
Deus é um ente cuja existência postulamos para que seja possível a esperança no cumprimento integral do homem como ser moral. O homem, dada a consciência da sua finitude não toma o lugar de Deus (não se deve falar em Kant de uma "morte de Deus") mas com Kant, o homem é o centro por referência ao qual tudo ganha sentido.

4. A "REVOLUÇÃO COPERNICIANA" NO PLANO ESTÉTICO

«Kant quis realizar no plano estético, assim como no domínio do conhecimento e no da moral, uma revolução coperniciana. Sabemos que a hipótese de Copérnico substituía o geocentrismo pelo heliocentrismo, i. e., fazia do Sol e não da Terra o centro do nosso sistema planetário. Kant, na ordem do conhecimento, dizia que não era nas coisas (nos objectos) mas sim no espírito (no sujeito) que se encontrava o centro, o fundamento do conhecimento científico. » [Louis-Marie Morfaux]
No plano estético verificamos que a validade do juízo estético se encontra no sujeito e não nos objectos. A beleza não é uma propriedade objectiva das coisas mas sim um sentimento. O sentimento de prazer tem um valor estético se o sujeito ao contemplar o objecto estiver liberto de qualquer desejo ou interesse.
Assim, as condições que nos permitem falar de um objecto como belo encontram-se do lado do sujeito. A beleza é uma característica do nosso sentimento de prazer desinteressado e não uma qualidade que está nos objectos. A beleza não é uma coisa mas algo que eu sinto na relação pura e livre com as coisas.